Muito doído

Na coluna deste domingo, o jornalista Marcos Araújo faz um desabafo sobre as pequenas e grandes dores de quem sente o mundo com a pele descoberta e mostra que, em tempos tão duros, doer também é uma forma de resistência

Por Marcos Araújo

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Fico doído se não consigo fazer a borboleta que entrou em casa entender que o melhor lugar para ela é lá fora (Foto: Freepik)

Confesso: eu sou muito doído. Fico doído por muitas coisas. Sou do tipo que se entristece quando uma muda de planta não pega, quando tomo café sem a companhia de alguém, se a carne do almoço não fica no ponto, quando o livro do qual estou gostando chega ao fim ou quando o protagonista morre no final do filme. Fico doído se não consigo fazer a borboleta que entrou em casa entender que o melhor lugar para ela é lá fora. Esses são alguns exemplos das dores que sinto. Como se pode ver, são motivos bem banais, mas que servem para mostrar o quanto sou sentido e o quanto fico doído por qualquer coisa.

Mas não é só por essas trivialidades que me sinto assim. Há dores que são maiores, mais profundas. A indiferença me dói, assim como a falta de empatia e a crueldade. Ver que há quem durma com fome, enquanto outros esbanjam sem remorso, me dói. Saber que há quem se acostume com a desigualdade como se fosse parte da paisagem também é doloroso. A guerra no Oriente Médio e as mortes provocadas pelo último terremoto são de doer.

Fico doído ao ver crianças sem escola, pedindo dinheiro nos sinais; ao ver trabalhadores sem esperança e idosos sem dignidade. O discurso vazio de políticos que não enxergam as vidas por trás dos números é doloroso, assim como o descaso diante dos sinais de alerta da natureza sobre o desequilíbrio climático. O desprezo pela cultura, pela arte e pela educação também machuca.

É doloroso ver bibliotecas fechando, teatros esvaziados, artistas lutando para sobreviver e professores desvalorizados, como se tudo isso fosse supérfluo, como se a alma de um povo pudesse resistir sem alimento. A falta de incentivo e o descaso fazem com que muitos enxerguem o conhecimento e a sensibilidade como ameaça. Mas uma sociedade sem cultura, sem arte e sem educação está condenada a viver à margem de si mesma. Saber que muitos se acostumaram com o que deveria ser insuportável é dolorido.

Ser doído é sentir o mundo com a pele descoberta, sem proteção. É como disse Rachel de Queiroz: “e eu sou essa gente que se dói inteira porque não vive só na superfície das coisas”. No meu caso, vivo nas profundezas e é sempre mais dolorido. É lá no fundo que se encontram as verdades mais duras, aquelas que muitos preferem ignorar.

Ser doído pode parecer fraqueza, mas talvez seja justamente o contrário, uma prova de que ainda não endureci, de que ainda me importo. Prefiro assim. Porque, no fim das contas, doer é uma forma de sentir, e sentir é o único jeito de realmente estar vivo.

Marcos Araújo

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