12 anos de Boate Kiss: cultura de prevenção ainda é falha
Relembre o caso e saiba o que foi feito deste então para diminuir tragédias como essa no Brasil
Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, a cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, foi cenário de uma das maiores tragédias do Brasil. Um incêndio na Boate Kiss, então uma das principais casas noturnas da região, resultou na morte de 242 jovens e deixou 636 feridos. Doze anos depois, o caso levanta um questionamento que ainda ressoa: o quanto a sociedade avançou na construção de uma cultura de prevenção?
A festa organizada por cursos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) reuniu cerca de 1110 pessoas, ultrapassando o limite de 769 da boate.
Naquela madrugada, durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, faíscas dos dispositivos pirotécnicos atingiram a espuma de isolamento acústico no teto. O artefato, que gerava faíscas de até 4 metros e era indicado para ambientes externos, também liberava muita fumaça, enquanto a temperatura próxima ao palco chegava a 300 graus. Já a espuma, comprada em uma loja de colchões, era altamente inflamável e liberava gases tóxicos, como cianeto e monóxido de carbono, que, ao queimar, provocaram intoxicação nas vítimas.
Série de irregularidades
A boate enfrentava diversas irregularidades desde sua inauguração em 2009, incluindo períodos em que operou sem o alvará do Corpo de Bombeiros. No momento do incêndio, o alvará estava vencido há cinco meses. Durante a tragédia, um extintor de incêndio não funcionou devido ao uso recreativo em uma festa dias antes, e sobreviventes relataram dificuldades para evacuar o local. Os seguranças inicialmente orientaram os clientes a passarem pelos caixas, liberando a saída apenas após perceberem o perigo. A boate também tinha apenas uma porta e obstruções nas saídas, o que contribuiu para o alto número de vítimas.
Além disso, a falta de iluminação de emergência e sinalização nas saídas, a obstrução do sistema de exaustão de ar e a inexistência de chuveiros automáticos e ventilação adequada agravaram a situação. O sistema de ventilação estava bloqueado e muitos banheiros, local onde a maioria dos corpos foram encontrados, estavam lacrados. Os peritos concluíram que a infraestrutura inadequada foi um fator crucial para a alta mortalidade no incêndio.
Após quase nove anos, em dezembro de 2021, os sócios da boate, o vocalista e o produtor da banda foram condenados com penas que variam de 18 a 22 anos. No entanto, o julgamento foi anulado em agosto de 2022 devido a irregularidades processuais, e os réus continuaram em liberdade. Contudo, em setembro de 2024, o STF restabeleceu a condenação, argumentando que as falhas não prejudicaram a defesa e que a anulação violava princípios constitucionais. Os réus foram detidos novamente.
Para as advogadas Rafaela Fernandes, advogada especialista em direito cível e processual e Michele Leal, advogada especialista em direito penal, “a fiscalização municipal falhou, pois a atividade exercida pela casa noturna requeria autorização do Estado, sendo necessária a vistoria do Corpo de Bombeiros”. E seguem: “Em diversos momentos os alvarás de funcionamento não estavam com vigência adequada ou não se tinha o alvará de funcionamento e localização. Ou seja, a ausência de legalidade no funcionamento e a falta de fiscalização correta por parte do município contribuiu para que a tragédia ocorresse. O Estado claramente deixou de cumprir seu dever fiscalizador”.
Para Daniela Arbex, autora do livro “Todo dia a mesma noite”, que retrata o caso, a tragédia é emblemática pois “representa a luta incessante das famílias, que por quase 11 anos buscaram justiça”. Ela ainda afirma: “O que torna esse caso ainda mais marcante é que, antes mesmo dos réus, foram os próprios pais das vítimas processados pelo Ministério Público, em um contexto de desavença com a instituição, o que ficou claro como uma tentativa de intimidação. Então o desfecho desse caso com a prisão recente retomada dos réus para prisão, com várias idas e vindas desse processo, se deve à luta contínua sem tréguas das famílias que abriram mão da sua paz, do seu tempo, da sua saúde para se dedicar a essa causa. Sem o esforço deles, esse desfecho não seria possível. A cultura da impunidade no Brasil ainda é muito forte e muito presente. É inacreditável que pessoas que foram responsáveis pela morte de 242 jovens tenham levado quase 11 anos para ficarem presos”.
O que mudou?
12 anos depois da tragédia, algumas atualizações legislativas foram feitas para reforçar a segurança contra incêndios e desastres em estabelecimentos públicos. A criação de novas normas, como a Lei Kiss, estabeleceu diretrizes gerais para prevenção de incêndios e exigências para que os estados e municípios adequem suas próprias leis e fiscalizações. No entanto, a engenheira e professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Maria Teresa Gomes Barbosa destaca que, apesar dessas melhorias, ainda há muito a ser feito. “Há uma crescente atualização de diversas normas brasileiras (ABNT), entretanto no que se refere à prevenção de incêndios nas edificações há necessidade de um maior empenho, face às diversas inovações tecnológicas que ocorrem no setor”, destaca.
As advogadas analisam que “atualmente, os procedimentos de fiscalização e combate a incêndio em casas noturnas tiveram como marco de reestruturação o caso da Boate Kiss, em que há um foco maior das legislações na proteção do usuário, contudo, ainda existem lacunas sobre a responsabilização de agentes estatais e proprietários de casas noturnas”.
A Lei Kiss, criada inicialmente no Rio Grande do Sul, e posteriormente complementada por normas nacionais, é uma legislação brasileira voltada para a prevenção de incêndios e desastres em locais públicos, estabelecendo regras que os estabelecimentos devem seguir para garantir a segurança de seus frequentadores. Ela determina medidas preventivas e de combate a incêndios, além de exigir a implementação de sistemas de segurança adequados em locais de grande circulação de público, como teatros, casas de shows e arenas esportivas. A lei também estipula penalidades para agentes públicos que favoreçam, de maneira indevida, a liberação de alvarás e permissões para estabelecimentos que não atendem às normas de segurança.
A lei caracteriza a prevenção de incêndios e desastres como uma condição essencial para a realização de eventos artísticos, culturais, esportivos e outros, responsabilizando órgãos de fiscalização pelo cumprimento das normas. Um ponto importante da legislação é a definição de capacidade máxima de ocupação nos estabelecimentos, com a exigência de que locais com capacidade para cem ou mais pessoas sigam regras específicas de segurança, além de estender essas normas a estabelecimentos que atendem a públicos vulneráveis, como idosos e pessoas com dificuldades de locomoção, ou que armazenem materiais inflamáveis.
Além disso, a Lei Kiss detalha os requisitos para a aprovação de construções e reformas de estabelecimentos, incluindo a exigência de materiais de construção com baixa inflamabilidade e sistemas automáticos de combate a incêndio. Ela também determina que os estabelecimentos devem manter visíveis o alvará de funcionamento e a capacidade máxima de pessoas, garantindo que o público tenha acesso a essas informações antes de adentrar o local.
Entretanto, as advogadas afirmam que a lei sofreu sanções que poderiam torná-la mais rígida. “A lei sofreu 12 vetos. Esses vetos barraram medidas que poderiam solucionar os pontos apontados no inquérito policial como determinantes da tragédia. Por exemplo, a utilização de comandas foi um fato que impediu que os seguranças do local deixassem as pessoas sair, sob o argumento de que as pessoas não tinham pagado as comandas. O art. 16, alterava o Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo que seria vedada a utilização de comandas para controle de consumo, porém, foi vetado da lei. Todos os artigos que estabeleciam punições mais severas quanto a ausência de fiscalização, prevenção e combate a incêndios foram vetados, tais como a responsabilização do prefeito por improbidade administrativa (art. 13º) e que o descumprimento de determinações do Corpo de Bombeiros e da Prefeitura seria tipificado como crime (art. 12º). Todos esses pontos seriam determinantes para que a legislação sobre o caso fosse mais contundente na responsabilização de culpados.”
Além disso, as advogadas alertam ainda que “a falta de uniformidade nas leis e decretos municipais provoca uma fragmentação nas normas e resoluções técnicas, o que alguns especialistas identificam que são brechas para correta identificação de todas as necessidades de segurança previstas para determinado local. As legislações e decretos municipais podem variar de um Município para o outro, o que é um problema para a própria aplicação da Lei Kiss neste cenário, dada a ausência de interligação entre essas normativas.”
A engenheira ressalta que, apesar das atualizações e do fortalecimento da legislação, mudanças sem a devida autorização ainda representam um grande risco. “Desde o incidente da boate Kiss, as leis têm sido periodicamente atualizadas e estão mais rígidas. No entanto, o que se observa no Brasil é uma falta de discussão sobre a importância da segurança contra incêndios em edificações de forma geral, não se limitando apenas a casas noturnas. Por exemplo, após a vistoria do bombeiro e a emissão do alvará, que tem validade de cinco anos, alguns proprietários alteram o projeto original, modificando rotas de saída ou a destinação do uso do imóvel, o que não é permitido. Isso reflete uma questão cultural: é como se estivessem burlando a legislação.”
Além das atualizações legislativas, após 11 anos e seis meses da tragédia, iniciou-se a construção de um memorial no local onde a Boate Kiss estava situada. O objetivo do memorial é preservar a memória das vítimas e conscientizar a sociedade sobre o ocorrido. O espaço contará com um letreiro, um portão e objetos retirados do local original que farão parte de uma exposição itinerante. O projeto abrange 383,65 metros quadrados, com três salas, incluindo um auditório para 142 pessoas, uma sala multiuso e a sede da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). No centro, um jardim circular será rodeado por 242 pilares de madeira, cada um representando uma vítima e com um suporte para flores. A previsão da conclusão da obra é para março.
Daniela Arbex vê o memorial como uma forma de garantir que o caso não seja esquecido, mas também como uma ferramenta para evitar a repetição de tragédias semelhantes. Ela ressalta a importância de preservar a memória de eventos como esse: “Preservar a memória de tragédias coletivas no Brasil é essencial. O direito à memória é um direito de um povo, e é por meio dela que construímos nossa identidade e cultura. Saber o que aconteceu é fundamental para nos prepararmos e prevenir futuras tragédias. Esquecer é negar a história, e não podemos permitir que eventos tão trágicos, que poderiam ter sido evitados, sejam apagados. Devemos falar sobre o que aconteceu, pois é a única maneira de manter viva a memória das vítimas e promover uma cultura de prevenção”.
Cultura da prevenção
Para Arbex, “um dos maiores legados dessa tragédia coletiva é o esforço para a construção da memória” E segue: “Isso é muito perceptível, pois as famílias das vítimas lutaram incessantemente para que essa história não fosse esquecida, para que essas mortes não fossem em vão, e para fomentar a necessidade de uma cultura de prevenção no Brasil. Esse é um legado de luta, em especial pela responsabilização dos envolvidos. A força dessas famílias para alcançar esse desfecho é algo digno de aplausos. A luta delas é um exemplo de resistência e de esforço para que a memória não fosse silenciada”.
A cultura da prevenção envolve práticas, atitudes e comportamentos focados na antecipação e mitigação de riscos, com o objetivo de evitar acidentes e desastres. Ela engloba não apenas medidas preventivas técnicas, mas também a conscientização e o engajamento da população, das instituições e dos governos. No contexto da segurança contra incêndios, por exemplo, isso inclui a educação sobre riscos, a adoção de medidas preventivas diárias, a preparação para emergências e a manutenção de equipamentos de segurança.
Embora o Corpo de Bombeiros de Minas Gerais realize ações periódicas para capacitar organizadores e responsáveis técnicos, como eventos de treinamento e orientação, a cultura de segurança contra incêndios no Brasil ainda não é consolidada de forma eficaz. A falta de uma política de prevenção estruturada e a implementação de medidas isoladas, como extintores e planos de evacuação, não são suficientes para garantir a segurança. A mudança de mentalidade e comportamento da população é essencial para que a prevenção se torne uma realidade eficaz, e isso precisa ser abordado em escolas, universidades e por meio de campanhas de conscientização que envolvam todos os setores da sociedade.
O Corpo de Bombeiros recomenda que, ao entrar em um estabelecimento, as pessoas verifiquem saídas de emergência desobstruídas, identifiquem brigadistas para apoio em casos de necessidade e verifique a presença de iluminação de emergência e extintores funcionais.
A engenheira enfatiza que a responsabilidade pela segurança não deve ser apenas dos órgãos públicos e proprietários de estabelecimentos. A sociedade, especialmente após a tragédia da Boate Kiss, precisa estar aberta a novos aprendizados. O desenvolvimento de projetos e campanhas de conscientização, bem como a educação sobre segurança, deve ser ampliado para mudar a percepção e os hábitos da população em relação à segurança, tornando-a uma prioridade contínua.
A tragédia da Boate Kiss deixou cicatrizes profundas, mas também gerou um chamado a ação. O exemplo de resistência das famílias das vítimas mostra que a prevenção não é apenas necessária – ela é urgente. Transformar a cultura de prevenção em um compromisso coletivo é a única forma de evitar que tragédias como essa voltem a acontecer.
*Estagiária sob supervisão da editora Cecília Itaborahy