Heróis da resistência
“Vira o disco”, “volta a fita”, “pegar o bonde andando”… Expressões idiomáticas relacionadas ao uso de determinadas tecnologias tendem a ficar datadas. Para jovens em seus 20 anos, por exemplo, pode demorar, em alguns momentos, para “cair a ficha”, e não raramente a expressão poderá ser usada por eles, mas a grande maioria jamais usou um telefone público de ficha – muito provavelmente qualquer telefone público. Na era dos dispositivos tecnológicos cada vez mais modernos, personalizados e multifuncionais, pensar que há pessoas para as quais eles não fazem parte do cotidiano é de se causar estranhamento, mas aparentemente é mais comum do que possamos pensar. A Tribuna conversou com pessoas de diferentes perfis, ocupações e idades e conheceu um pouco mais sobre o cotidiano de quem escolhe abrir mão das novas tecnologias.
Celular? Não, obrigado!
Interromper o bate-papo com os amigos para atender uma ligação não faz parte da rotina do professor Anderson Ferrari. Perder a conexão com o mundo off-line para ficar mexendo no telefone, menos ainda. Sabe aquela sensação de estar nu quando se esquece o celular em casa? Anderson nunca teve. “Quando o celular surgiu, era caríssimo e quando se tornou mais acessível, não tive essa ânsia. Além disso, na época em que o celular surgiu, era um objeto de muito valor e, consequentemente, de ostentação. Nem é o caso hoje, porque todo mundo tem. Mas naquela época, o aparelho em si, aquele tijolo, trazia uma série de significados que não me agradavam”, justifica ele, que diz nunca ter sentido pressão profissional, familiar ou de amigos para adquirir seu telefone móvel. “Minha família e amigos reclamam um pouco em algumas situações. Gosto de viajar, e nem sempre as pessoas me acham. Mas acho que o próprio celular trouxe essa impaciência, essa ansiedade de ter que achar qualquer pessoa a qualquer momento. Comigo, não. Só vão me achar na hora em que eu quiser”.
Apesar de não ter planos de adquirir um celular, Ferrari reconhece que já foi salvo pelo aparelho (alheio) algumas vezes. “Uma vez estava na estrada, e meu carro quebrou.Tive sorte de estar com um amigo e poder usar o telefone dele para chamar um mecânico. Outra situação foi a primeira vez em que fui a Paris, sem falar francês ou conhecer a cidade. Quando escutei uma moça falando ao celular em português, ‘colei’ nela e pedi ajuda”, relembra o professor, que mesmo assim prefere não ter seu próprio telefone. “Teria dado um jeito. Sempre foi possível resolver situações como estas antes dos tempos do celular.”
Tudo no papel
Esqueça comandas registradas no computador e mesmo as mais antigas caixas-registradoras. No Caminho da Roça, bar e restaurante que fica bem no Centro da cidade, as contas são todas registradas no papel, como acontece em muitos botecos e vendas de bairro. As contas do dia ficam no balcão, anotadas no papel que embala pacotes de cigarro. “Fica tudo com o nome do cliente, depois as contas de cada dia vão para um caderno. Tenho tudo anotado desde que abri o bar, mais de dez anos atrás. Pelo registro do dia, lembro quem estava aqui e o que aconteceu”, conta Leonardo Bellini, proprietário do estabelecimento, que também faz controle de estoque e de pagamento dos funcionários manualmente, em cadernos que ele mesmo atualiza. “Acho mais prático e mais rápido. No computador, teria que ter uma pessoa só para atualizar estes dados porque movimento de bar e restaurante exige dinâmica. Outra vantagem é que acredito que acaba sendo mais confiável: papel e caneta não dão pau”, resume o empresário, que também tem uma lista de preços escrita manualmente, que fica no balcão, perto de onde as contas são fechadas com calculadora e entregues aos clientes manuscritas também no papel que embala os maços de cigarro.
Leonardo reconhece, entretanto, que a informatização do estabelecimento será inevitável. “Algumas exigências relativas a notas fiscais de fornecedores naturalmente farão com que precisemos ter um computador aqui. Também preciso disponibilizar pagamento em cartão, o que fará com que tenhamos que ter as maquininhas. Atualmente só aceitamos dinheiro em espécie. Mas enquanto puder, vou resistir”, brinca o empresário, que também não é adepto das tecnologias fora do trabalho. “Até comprei um smartphone, mas não uso no dia a dia, só quando vou passear com a família, fazer fotos, etc. Prefiro usar o celular só pra ligar mesmo”, diz ele.
Opção pessoal
Quem tem acesso às pesquisas da professora do Instituto de Artes e Design da UFJF (IAD) Letícia Perani, que estuda tecnologia e suas relações com a comunicação e a cognição, certamente imagina que ela seja dona de um telefone com múltiplas funções, moderno e ultraconectado. Ledo engano. Justamente por ser usuária de outros dispositivos que suprem a função de um smartphone, como tablet, notebook, iPod e Apple TV, Letícia prefere ter um telefone simples, para fazer chamadas e trocar SMS, como o Nokia 1661 que tem desde 2010. “Acredito que um pesquisador de tecnologia deve estar minimamente conectado com os desenvolvimentos da área (lançamentos, usos etc.) para poder entender com mais clareza como os dispositivos funcionam e como as pessoas fazem uso dessas tecnologias – porém, não fazer o uso delas é uma opção pessoal, e que em tese não atrapalha nas pesquisas”, opina a professora.
“Nunca fui muito fã de telefones em geral, de conversar pelo telefone, então os celulares também nunca me atraíram. Ter um com mais opções não me interessa tanto – prefiro investir meu dinheiro em outros bens. Mesma coisa com o meu notebook: troquei o meu no ano passado, depois de sete anos de uso pesado. Atendendo minhas necessidades de uso, não ligo se o dispositivo é velho, ou se já está ultrapassado”, diz ela, que, para conversar com amigos, prefere usar o chat do Facebook ou e-mails.
Como pesquisadora, Letícia reconhece que a ampliação do acesso à tecnologia móvel tem seus aspectos positivos e negativos. “Vejo maior disponibilidade e rapidez na obtenção de informações, a possibilidade maior de manter contato com familiares e amigos distantes, um certo aumento no letramento (já que as pessoas podem escrever errado nas redes sociais, ou compartilhar textos duvidosos, mas pelo menos estão escrevendo e lendo mais – risos). Por outro lado, o excesso de exposição pessoal nas redes sociais, auxiliado pelo uso de smartphones, a ‘ostentação’ em relação aos novos modelos lançados e o uso inadequado do dispositivo em situações públicas (alunos não prestando atenção nas aulas, barulhos no cinema, distanciamento da pessoa em reuniões sociais etc.) dão um caráter negativo para os smartphones”, avalia.
Fichas datilografadas há 32 nos
No escritório de uma loja de vestuário no Centro, um ruído que há muito tempo anda um tanto sumido pode ser ouvido: o som das teclas de uma máquina de escrever. Segundo o empresário Jorge Arantes, tal melodia faz parte da história do estabelecimento há 32 anos, desde a abertura das portas. “Quando abrimos, era a realidade da época. Até pouco tempo, ela atendia 100% as necessidades da loja, mas hoje em dia há a obrigatoriedade de notas fiscais eletrônicas, por isso usamos o computador, que também registra nossos controles de estoque, explica ele. Apesar da digitalização de boa parte das operações da loja (a contabilidade é terceirizada e 100% informatizada), alguns procedimentos do dia a dia ainda são datilografados. “Não aderi ao pagamento on-line, ainda vamos ao banco e efetuamos a operação no caixa, usando cheques que são datilografados. Também mantemos um sistema de crediário próprio para alguns clientes antigos e fiéis, e as fichas dos cadastros deles são todas datilografadas”, conta o comerciante.
Jorge não desconsidera a possibilidade de que todas as operações sejam feitas via computador, mas confessa que, mesmo em seu dia a dia, não é lá muito afeito à tecnologia. “Até pouco tempo, me considerava um herói por sobreviver sem celular e sem computador (risos). Hoje em dia, uso notebook e tenho um smartphone, mas não uso nem 1% de seu potencial. Mas agora fui de herói a marginalizado, me sinto um tanto analfabeto digital. Sei que já estou começando atrasado e que não dá para acompanhar o ritmo dos avanços tecnológicos, mas pelo menos o ensino fundamental neste quesito, o básico, eu terei que saber (risos).”