Maioria dos brasileiros é favorável a abortos previstos em lei; MG tem 34 instituições de referência
Em Juiz de Fora, Hospital Regional João Penido é o indicado para acolhimento humanizado e acompanhamento multiprofissional
“Todos já usamos a expressão ‘só quem passou por isso sabe’. E há uma boa razão para isso. Existem experiências que são impenetráveis para quem não as viveu. Perder um filho, sofrer de depressão, ser discriminado pela cor da pele, ser um cadeirante sem acesso a rampas, ser assediado sexualmente – em todos esses casos, apenas os envolvidos podem realmente compreender a profundidade do que enfrentam”, analisa o psiquiatra David Sender, motivado pela polêmica do Projeto de Lei 1904/24, que equipara o aborto acima de 22 semanas de gestação ao crime homicídio, aumentando de 10 para 20 anos a pena máxima para quem fizer o procedimento. A discussão mobilizou a opinião pública, as ruas e as redes sociais, e a discussão do PL ficou para o retorno do recesso parlamentar da Câmara dos Deputados, em agosto.
Apesar do imbróglio, um levantamento realizado pelo Ipec e divulgado na última terça (16) aponta que a maioria dos brasileiros é favorável ao aborto legal nas três situações permitidas por lei: em casos de estupro (58%), quando a gravidez representa risco de vida à mulher (62%) e quando o feto não possui chances de sobrevivência (67%).
O percentual de entrevistados que se opõem ao aborto legal varia entre 25% e 33%. A pesquisa ainda indica que 70% dos brasileiros com mais de 16 anos defendem a criminalização do aborto. Outros 20% são a favor de descriminalizá-lo, 6% dos abordados dizem que são” nem contra nem a favor” e 4% deles não quiseram responder.
A votação do PL 1.904 diretamente no plenário, sem passar antes pelas comissões (conforme estabelece o regime de urgência em que a pauta tramitava) causou alvoroço, já que o texto representa um retrocesso aos direitos das mulheres ao fixar o prazo máximo para abortos legais, inclusive em situações de violência contra crianças e adolescentes. Atualmente, a lei permite a interrupção da gravidez em casos específicos sem estipular um tempo limite de gestação.
Após a repercussão do assunto e a manifestação de milhares de mulheres por todo o Brasil, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que o projeto de lei sobre o aborto será debatido no segundo semestre, após o recesso parlamentar, e garantiu não haverá perda nos direitos já garantidos pelas mulheres.
Em Juiz de Fora, procedimento legal deve ser buscado no João Penido
Segundo a Secretaria de Estado de Saúde (SES), 34 instituições são referências em Minas Gerais para a realização do abortamento gratuito nos casos previstos em lei. Em Juiz de Fora, o Hospital Regional João Penido, que fica na Avenida Juiz de Fora, 2.555, no Bairro Grama, Zona Nordeste, é o indicado para essas situações. “A vítima deve buscar atendimento médico no hospital de referência mais próximo. O procedimento de interrupção da gestação será realizado se for constatado que se enquadra nos casos previstos em lei”, orienta a SES.
Conforme a pasta, não há necessidade de boletim de ocorrência ou de autorização judicial. Menores de 18 anos precisam estar acompanhados dos pais ou do responsável. “A equipe de saúde irá realizar acolhimento humanizado e acompanhamento por equipe multiprofissional durante todo o atendimento, com orientações acerca do procedimento.” De acordo com a SES, será feita anamnese, exames físico geral e ginecológico, avaliação do laudo ultrassonográfico e dos demais exames complementares que possam ser necessários.
Na Zona da Mata também há hospitais de referência em Ubá (Hospital Santa Isabel), Muriaé (Casa de Caridade de Muriaé e Hospital São Paulo), Ponte Nova (Hospital Nossa Senhoras das Dores), Viçosa (Hospital São Sebastião) e Manhuaçu (Hospital César Leite).
Já na região de Belo Horizonte/Nova Lima/Santa Luzia são cinco casas de saúde: Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG/Ebserh), Hospital Júlia Kubitschek, Hospital Metropolitano Odilon Bherens (HOB), Maternidade Odete Valadares e Hospital Risoleta Tolentino Neves.
Mais informações sobre os documentos necessários para os casos de aborto previstos em lei e sobre como buscar atendimento na rede hospitalar de referência mais próxima em Minas podem ser acessados neste link. “A vítima pode digitar o nome do seu município de residência ou de localização no campo ‘Unidades onde o serviço é prestado’. Para achar o campo de forma mais ágil, clique no botão vermelho no topo da página ‘Encontrar uma Unidade’, detalha a SES.
Mais de 75% dos abusos foram praticados contra vulneráveis
Especialistas apontam que em um país de extrema desigualdade social, o processo entre buscar o serviço e fazer o aborto legal pela saúde pública facilmente pode ultrapassar o prazo de 22 semanas de gravidez. Portanto, a nova lei acabaria penalizando vítimas de violência sexual que engravidaram de estupradores. Dados do Ministério da Saúde divulgados pela Agência Brasil revelam que, só no ano passado, foram registrados 74.930 estupros, o maior número da história. Desses, 56.820 foram crimes sexuais contra vulneráveis. Ou seja, mais de 75% dos abusos foram praticados contra crianças e adolescentes de até 14 anos. Ainda em 2023, 140 meninas dessa faixa etária fizeram aborto legal, do total de 2.687 procedimentos do tipo contabilizados no país. A quantidade de vulneráveis grávidas e submetidas ao método naquele ano mais que duplicou em relação a 2018, quando foram registrados 60 casos. Já entre jovens de 15 a 19 anos, foram feitos 291 abortos, contra 199 cinco anos antes, confirmando a tendência de aumento.
“Quando falamos sobre interrupção da gestação, os ânimos costumam se inflamar, pois isso, naturalmente, mexe com crenças em diferentes níveis: particulares, de grupos, comunitárias e sociais (…). Não é incoerente a concepção de que interromper a vida de um ser viável possa ser uma forma de homicídio. Mas por mais sentido que isso faça, é preciso levar em consideração outros pontos fundamentais antes de determinarmos que a maneira como pensamos e sentimos é aplicável para todos os casos”, pondera o especialista David Sender, que atua no Espaço Calmamente.
‘Todas foram obrigadas a recorrer à clandestinidade’
O aborto no Brasil, para além dos casos permitidos por lei atualmente, é punido com penas que variam de um a três anos quando provocado pela gestante ou com seu consentimento. Já quem o faz sem a permissão da mulher pode pegar de três a dez anos. Mas a realidade de muitas mulheres foge à lei. “Até hoje, nunca atendi uma paciente feliz por ter realizado um aborto. Todas, sem exceção, foram obrigadas a recorrer à clandestinidade, muitas vezes pressionadas por família ou parceiro, e afirmaram: ‘é horrível’. Ou seja, nenhuma foi indiferente ao procedimento. Vale notar que o público que atendo tende a possuir um nível de renda acima da média da população, o que implica que a interrupção da gestação ocorreu de maneira relativamente segura e higiênica. Uma realidade inviável para a maioria das mulheres”, destaca o psiquiatra David Sender.
O especialista conta que o grau de vergonha, medo e culpa que as mulheres relatavam durante as consultas sempre o comoveu. “Culturalmente, quanto mais moralistas e provincianos são os casais e famílias, mais sobrecarregadas as mulheres tendem a ficar – afinal, a moralidade é sempre mais severa para elas. O machismo é tão frágil que precisa se sustentar em clichês como bases biológicas ou religiosas para safar os homens da responsabilidade que verdadeiramente lhes pertence.”
Segundo Sender, estudos apontam que não há diferenças significativas na saúde mental da mulher que faz aborto, mas há impactos claros naquela impedida de fazê-lo. “Por mais indigesto que possa parecer, o suicídio é uma das principais causas de morte em gestantes, e a principal em mulheres no primeiro ano após o nascimento de um filho, sendo os principais fatores de risco envolvidos: gravidez indesejada, impossibilidade de aborto e transtornos psiquiátricos. Quando violência sexual é adicionada à equação, o risco se torna estratosférico. Por isso, o slogan ‘luta pela vida’, frequentemente usado por movimentos antiaborto, não poderia ser mais contraditório, pois não vale para todas as vidas.”
O psiquiatra reflete como os defensores da viabilidade fetal preveem que será a vida dessas crianças após o nascimento: “Muitas mulheres que tiveram filhos nascidos de violência relatam sentir que terão que, pelo resto da vida, lidar com a materialização viva da maior injúria que alguém já cometeu contra o seu corpo, mente e dignidade. Muitas dizem que não conseguem ver o bebê sem lembrar dos traumas. Algumas associam a amamentação à violência sofrida, e outras, para piorar, se sentem triplamente angustiadas ao verem que a criança está crescendo com traços físicos semelhantes aos do estuprador. Além disso, pessoas nascidas nessas condições frequentemente enfrentam sérios problemas de identidade, pertencimento, graves conflitos familiares e incapacidade de criar vínculos saudáveis.”
‘Ter um útero não pode ser uma sina’
Para o médico David Sender, por mais que engravidar não seja um crime, a mulher ser proibida de interromper a gestação “é uma tremenda punição”, pois a “castra” da decisão de ser ou não mãe no momento em que ela desejar. “No caso de crianças e adolescentes, esse ‘momento’ ocorreu tão precoce quanto o impacto de suas consequências, que se estenderão pelo resto da vida de ambos (mãe e bebê), quando não para a família.” O psiquiatra acrescenta que mulher nenhuma se submete a um procedimento de aborto por prazer, e sim, por desespero. “E ninguém em sã consciência luta para que o aborto se torne um método contraceptivo tardio a fim de corrigir uma irresponsabilidade biológica.”
Lembrando que a mulher que engravida acidentalmente tem sempre um homem para fecundá-la, o psiquiatra aponta em relação ao PL 1904/24: “E se a verdadeira preocupação fosse evitar que mulheres e crianças recorressem a essa medida extrema, será que, além da segurança pública, não deveríamos investir na educação sexual nas escolas? Assunto que estranhamente provoca resistência, quando não revolta, naqueles que por coincidência se posicionam veementemente contra o aborto.” O especialista ressalta que a luta protagonizada pelas mulheres é pelo direito de escolher como cada uma deseja conduzir sua própria vida. “Convenhamos, pais podem sair de cena e pagar uma mísera pensão alimentícia. E quanto às mães? Ter um útero não pode ser uma sina, mas fatalmente se torna quando há uma legislação para regular o seu uso. Repensar a autonomia das mulheres sobre os seus corpos é uma dívida democrática que temos com todas.”
A situação é ainda mais grave se uma menina violentada for obrigada a seguir com a gestação, conforme prevê a proposta em tramitação no Congresso. “Nos deparamos com um segundo estupro. Logo, essa discussão jamais deveria ter sido iniciada. Trata-se de uma obscenidade em si mesma”, dispara Sender.