Após 30 anos, Chapéu D’Uvas enfrenta desafios que podem comprometer abastecimento de JF
Pesquisadores ouvidos pela Tribuna alertam para riscos envolvendo ocupação irregular no entorno, e moradores que precisaram ser realocados há três décadas contam suas memórias
Em 2024, a barragem de Chapéu D’Uvas completa 30 anos de sua inauguração. Inicialmente pensada, em especial, para controlar as inundações em Juiz de Fora, hoje a represa também tem papel fundamental no abastecimento de água do município. De acordo com o Comitê da Bacia Hidrográfica dos Afluentes Mineiros dos Rios Preto e Paraibuna, 50% da água fornecida à cidade vem da bacia. Entre estudos, paralisações das obras e remanejamento da população que habitava a área onde ficaria a represa, o processo para construção da barragem durou décadas. A Tribuna ouviu especialistas e antigos moradores da região alagada a fim de fazer um resgate histórico do processo e discutir sobre o futuro de Chapéu D’Uvas, que enfrenta desafios em relação à qualidade de suas águas.
Um dos fatos mais emblemáticos na história de Juiz de Fora foi a grande enchente de dezembro de 1940, quando a cheia do Rio Paraibuna atingiu locais como as avenidas Getúlio Vargas, Francisco Bernardino e Rio Branco. Há relatos de que as águas cobriram, inclusive, as escadarias do Cine-Theatro Central. Apesar de a enchente ser um marco histórico que comprovava a necessidade da construção de Chapéu D’Uvas, em 1929 já havia um estudo da Sociedade Dolabela, Portela & Cia Ltda., que se apresentou como um “embrião” para construção da futura barragem, de acordo com pesquisa feita pelo professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Pedro Machado.
Conforme o pesquisador, que estuda o tema há mais de dez anos, a represa de Chapéu D’Uvas foi concebida, originalmente, para regularizar as vazões do Rio Paraibuna, de forma a proteger Juiz de Fora de possíveis inundações e também assegurar o suprimento de água para funcionamento das usinas da então Companhia Mineira de Eletricidade. “Em 1957, o Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) elabora o projeto da barragem, concluído em 1958 e que foi complementado em 1961, com o acréscimo da planta prevendo a tomada de água para o abastecimento de Juiz de Fora, ou seja, o terceiro uso das águas da represa: o abastecimento humano. A represa é importante até os dias atuais para o atendimento desses três principais usos”, explica, referindo-se à prevenção de inundações, abastecimento do município e geração de energia. No caso das usinas, Machado esclarece que a geração de energia “não é mais a função da represa, mas ela continua atuando assim, especialmente por manter um fluxo maior no inverno, período seca”. As Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) influenciadas por esta gestão são as de Marmelos, Joasal e Paciência.
População precisou deixar suas casas e ser remanejada
Do projeto à concepção da barragem, houve diversos percalços, fazendo com que a construção, em si, levasse anos. Entre eles, havia o remanejamento da população que morava na área que deveria ser alagada para formação da represa. Conforme a pesquisa de Machado, na localidade de Dores do Paraibuna, na região de Santos Dumont, estima-se que havia 217 imóveis e 740 habitantes. Já na Colônia de São Firmino e na localidade de Paraibuna, a população estimada era de 360 pessoas, em 83 imóveis. Com isso, cerca de 1.100 pessoas precisaram deixar suas casas para a construção da barragem.
“Entre 1986 e 1988, a população das localidades de Paraibuna e Colônia de São Firmino foi reassentada na nova Colônia de São Firmino, cuja construção fora aprovada pelo Decreto Nº 02/86, de 18/04/1986, da Prefeitura de Ewbank da Câmara. As famílias receberam, como indenização, casa de alvenaria com luz elétrica, rede de água e esgoto, posto médico, igreja, escola e transporte coletivo”, explica Machado.
Por outro lado, o processo de desapropriação, indenização e reassentamento da população de Dores do Paraibuna foi ainda mais longo. “Embora o remanejamento dos moradores tenha ocorrido em 1990 e 1991, para a localidade de Nova Dores do Paraibuna, construída para esse fim, o problema das indenizações só foi resolvido em 1996, implicando em grande desgaste para os moradores”, conta o professor.
Moradores relatam processo de adaptação à nova colônia
Aos 59 anos, José Wilson de Paula trabalha, hoje, a poucos metros do lugar em que nasceu e viveu grande parte da sua vida. Da Fazenda Experimental da UFJF, onde Wilson atua na produção de mudas para reflorestamento da região, é possível ver o que restou da antiga Colônia de São Firmino: apenas as ruínas de um cemitério no topo de um morro. As casas, o grupo escolar e a igreja ficaram submersos para a construção da represa de Chapéu D’Uvas.
“Todo mundo foi embora, mas não querendo ir. Pensamos que não ia dar certo, mas, no final das contas, deu”, comenta Wilson. Na época, ele morava em uma casa com seus pais e outros sete irmãos. Apesar de décadas após o realocamento dos moradores, Wilson relata sentir falta da antiga colônia, especialmente do sossego. O processo para a mudança durou cerca de 20 dias, sendo que novas casas foram disponibilizadas para os moradores.
“Cada dia levava um bocado, no outro dia buscava as coisas de outro vizinho, e assim foi”, conta. “Mas foi rápido. Eles vieram encher a barragem para o povo sair à força. Aí o povo foi se retirando, mandaram o caminhão buscar os móveis e foi para a Colônia Nova”, relata.
A saudade dos tempos da antiga colônia é compartilhada por José Vicente de Paula, 62 anos, e Jerônimo de Oliveira, 82. Quando os moradores foram remanejados, José Vicente morava com sua mãe e conta que, por conta da pressa para o fechamento da barragem, precisaram se mudar em poucos dias. Para ele, há pontos positivos e negativos em relação a todo o processo que precisaram passar.
“Nós gostávamos muito de lá, só que as casas eram bem inferiores. As casinhas eram muito fraquinhas, eram de sapê. Mas todo mundo era feliz. Hoje não tem muita felicidade como era lá. Não sei o porquê… O pessoal era mais amigo dos outros.”
Jerônimo de Oliveira morava com sua esposa e sete filhos pequenos quando ocorreu a mudança, o que acabou dificultando o processo. Apesar disso, ele relata não ter sentido medo na época, embora sinta falta, hoje, do lugar onde cresceu. “Lá é bonito e bom. Nós éramos tudo gente pobre, mas era um lugar joia, que não tinha nada. Agora, a gente não deixa portão aberto, ficou muito perigoso”, aponta.
‘Lá não precisava de segurança’
A questão da insegurança nos dias de hoje na nova colônia também é um ponto que foi destacado por José Vicente, que já teve sua casa roubada. “Lá não precisava de segurança. As casas eram amarradas com uma tira na porta e ninguém mexia”, brinca. “Hoje, aqui, se não largar nada de chave, a hora que você chegar…”.
Por outro lado, a infraestrutura do espaço da nova colônia agradou outros moradores, como foi o caso de Maria Lúcia, de 67 anos. Décadas após o remanejamento da população, ela se acostumou com o novo local e, inclusive, até o prefere. Mãe de sete filhos, Maria Lúcia encontrou na colônia atual mais facilidade para seu dia a dia.
“As coisas lá eram mais difíceis. Para levar ao médico, tinha que ir a pé, não tinha condução. Então acabou que foi pra melhorar, e não sinto falta. Eu me acostumei aqui”, diz. “Nos primeiros dias você sente, né? Mas depois que passam muitos anos, você se acostuma com o outro lugar.”
Pertencimento
Em um certo período do ano, quando não estão cobertas pelas águas da bacia, é possível avistar ruínas que revivem o passado da velha Dores do Paraibuna e da Colônia de São Firmino. A imagem de uma igreja e de um cemitério, localizados no alto do morro, em lados opostos, é a única lembrança de concreto que sobrou daquela época. Além de José Wilson, José Vicente, Jerônimo de Oliveira e Maria Lúcia, mais de mil moradores da Colônia de São Firmino e de Dores do Paraibuna precisaram se mudar para dar lugar às águas da represa.
“A maioria tinha ligações muito antigas com sua terra. A questão do sentimento de pertencimento é muito específica e subjetiva, pois envolve emoções diferentes, difíceis de superar. Pode envolver mais que a perda da terra, mas da identidade”, afirma o professor Pedro Machado.
Histórico da construção da represa de Chapéu D’Uvas de Leticya Bernadete
Estudo da UFJF indica má qualidade da água da represa
Hoje, os maiores problemas enfrentados pela bacia são em relação à manutenção da melhor qualidade e da maior quantidade de suas águas, segundo Machado. Um estudo desenvolvido pela UFJF e divulgado no ano passado apontou que a qualidade da água das represas que abastecem Juiz de Fora varia de péssima a ruim. O documento mostra que a ocupação irregular, diminuição das matas e atividades econômicas exploratórias são os principais obstáculos.
O professor Cézar Henrique Barra Rocha, do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGeo) da UFJF e organizador do estudo, explica que a urbanização na Represa de Chapéu D’Uvas chegou a 1,1% da área da bacia e a 1,5% nas Áreas de Preservação Permanente (APP) nas margens do reservatório. Além disso, o avanço da silvicultura (florestas plantadas com o intuito de extrair matéria-prima para atender o mercado) sobre cerca de 8,7% da bacia e 4,6% das APPs preocupa os pesquisadores. “Esses valores quadruplicaram em dez anos para a urbanização e duplicaram para a silvicultura. A se manter essa taxa, teremos problemas complexos para administrar, como o retorno das cianobactéricas, exigindo tratamento de água avançado nas ETAs e a perda da balneabilidade para os usos múltiplos.”
Em relação à ocupação imobiliária acelerada no entorno da bacia, Pedro Machado avalia que a ocupação em si não é um problema, mas a forma e os locais em que ela ocorre é que podem ser problemáticos. “Sem um plano de ordenamento da bacia como um todo, como uma unidade, cada município rege a ocupação de seu território, sendo mais ou menos restritivo. O modelo de ocupação que temos visto acontecer na bacia não é o desejável, e em longo prazo pode trazer problemas de difícil reparação.” O professor comenta que a bacia não pode ser tratada da mesma maneira como tratamos a ocupação de outros locais, pois ela é um ambiente diferente, que tem características diferentes.
Para o pesquisador, o processo de ocupação e uso do solo por várias atividades avançou mais do que as ações de proteção do manancial, e o fato de a bacia abranger municípios diferentes dificulta a sua gestão. A represa de Chapéu D’Uvas, que é de domínio da União, fica localizada nas cidades de Antônio Carlos, Santos Dumont e Ewbank da Câmara; além disso, suas águas são usadas direta e indiretamente por Juiz de Fora. “Como os interesses são muito diversos, a gestão da bacia como uma unidade sempre se mostrou um desafio. Existem algumas ações, mas pontuais.”
Licitação para plano de uso e ocupação
O processo de licitação para a realização do “Plano de uso e ocupação da Bacia de Contribuição da Represa de Chapéu d’Uvas” está aberto desde 15 de março. O certame está previsto para ocorrer no dia 12 de junho, e a empresa ganhadora deverá estabelecer diferentes cenários para organizar o zoneamento ecológico e econômico da bacia de contribuição, com o objetivo de diminuir a ocupação irregular em torno da represa e melhorar a qualidade da água.
O professor do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFJF Nathan Barros afirmou, em entrevista à Tribuna, que a atual situação da represa é preocupante. Segundo o pesquisador, que é especialista em mudanças climáticas, a ocupação irregular às margens de Chapéu D’Uvas pode levar à perda da qualidade da água e comprometer o seu uso. Além disso, o professor também aponta que a erosão das margens aumenta a quantidade de sedimento na represa e compromete a capacidade de estocar água. “Essas duas coisas estão diretamente relacionadas com a ocupação irregular. Por um lado, aumenta o lançamento de efluentes não tratados para o reservatório, aumentando a eutrofização e diminuindo a qualidade da água. Por outro lado, aumenta a erosão do solo por retirar a vegetação nativa.”
Cesama diz não detectar alteração em parâmetro de qualidade da água
A Cesama analisa a água das represas de Juiz de Fora a cada uma hora, durante todos os dias, e não detectou alterações nos parâmetros da qualidade, de acordo com o diretor-presidente da companhia, Júlio César Teixeira. “Até o presente momento, nós, que fazemos um controle extremamente rigoroso da qualidade da água para consumo humano, não detectamos essas alterações de qualidade da água”, diz. “Tem estudos da Universidade com uma metodologia distinta, já indicada, que chega a conclusões sobre a qualidade da água. Mas nós, que tratamos a água, não sentimos alteração ainda da qualidade, nem da quantidade de água. Pode vir a acontecer no futuro? Pode, se a ocupação das margens for desordenada e se houver depredação do contorno e da vegetação natural do entorno.”
Apesar da ocupação do local ser uma preocupação para Juiz de Fora, o lago criado para construção da represa fica localizado nas cidades de Ewbank da Câmara e Santos Dumont. Desta forma, a Cesama não pode atuar na região, a não ser na própria barragem. “A Cesama, uma empresa do município de Juiz de Fora, não pode entrar em outro município para opinar ou fazer qualquer tipo de ação, com exceção da barragem, que é da União, e a União cedeu para a Cesama fazer a manutenção no ano de 2021”, explica.
Segurança da barragem
Em relação à barragem, a Cesama produz relatório de segurança de estabilidade mensalmente. De acordo com o diretor-presidente, a cada ano, esses documentos se transformam em um relatório anual de segurança, que é submetido a uma empresa especializada em auditoria. O laudo emitido pela empresa, por sua vez, é encaminhado ao Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), que realiza vistorias anuais em todas as barragens operadas pela Cesama (São Pedro, João Penido e Chapéu D’Uvas).
“Por lei, são essas as medidas que devem ser tomadas e nós cumprimos toda a legislação do Plano Nacional de Segurança de Barragens”, explica Teixeira. “Da barragem, realmente, nós podemos tomar conta porque há um termo de cessão; não o lago e nem as margens, porque se situam fora do município de Juiz de Fora”, reforça.