A histĆ³ria de Liliane Gonzaga com o carnaval comeƧa quando ela ainda era bem pequena, com noites viradas para assistir aos desfiles de carnaval do Rio de Janeiro. Filha de um trabalhador da construĆ§Ć£o civil e de uma lavadeira, apesar de nĆ£o ter vĆnculos diretos com essa festa, foi por meio da paixĆ£o dos pais que teve esse primeiro contato. “Meu pai sempre trouxe pra gente essa cultura de carnaval. Comprava os vinis de escola de samba do Rio, lia a sinopse de todas as escolas, explicava pra gente o que a escola ia trazer e qual seria a proposta dentro disso. Fazia questĆ£o de explicar isso pra gente e de ensinar a sambar, tambĆ©m”, conta. Foram anos em que acompanhava os desfiles com ele, dando notas por conta prĆ³pria, e tambĆ©m de ida com a mĆ£e e a irmĆ£ para a corda da Banda Daki. Nesse percurso, a habilidade e a emoĆ§Ć£o que as portas-bandeiras traziam sempre chamou a sua atenĆ§Ć£o. Mas durante boa parte da vida nĆ£o imaginava que ocupar esse lugar pudesse ser algo que iria de fato fazer. Por destino e um amor que atĆ© hoje ela nĆ£o consegue bem explicar, isso aconteceu. E veio acompanhado de um trabalho que ocorre o ano inteiro, como conta,Ā para tornar o carnaval de Juiz de Fora possĆvel, com diversas aulas, realizaĆ§Ć£o de rifas, aƧƵes sociais e muita luta.
“Dia de desfile de escola de samba no Rio era sagrado. Todo mundo na sala, deitado no colchĆ£o, com a televisĆ£o ligada, pra gente assistir o desfile. Era obrigatĆ³rio assistir a noite inteira”, relembra. Essa primeira lembranƧa do carnaval, que marcou boa parte da sua infĆ¢ncia, guiou seu interesse durante muitos anos por esse evento anual. JĆ” na juventude, ia todos os anos ao desfile da Banda Daki, fantasiada junto com a sua irmĆ£. AtĆ© que um dia, foi em um desfile da Juventude Imperial e se apaixonou, comeƧando a desfilar como destaque e chefe da ala da Juventude, tendo comeƧado a fazer parte da diretoria tambĆ©m. Mas foi por acaso que essa relaĆ§Ć£o com o carnaval mudou: ela estava danƧando samba no CardĆ”pio Mineiro, quando RĆ©gis da Vila, presidente do Instituto Cultura do Samba (ICS), a avistou. “Ele se aproximouĀ de mim e falou: āVocĆŖ Ć© porta-bandeira, vocĆŖ tem talentoā. Eu disse: āVocĆŖ tĆ” louco, eu nĆ£o tenho talento pra issoāā, conta. Foi assim que ela foi chamada pela primeira vez para uma aula no Instituto, e nunca mais parou.
Como o Instituto funciona como um braƧo da escola Manoel DionĆsio, do Rio, ela logo comeƧou a fazer aulas por lĆ” tambĆ©m. “Eu pego um Ć“nibus aqui e faƧo as aulas todos os sĆ”bados, das 14 Ć s 18h. Terminando a aula, pego meu Ć“nibus e volto pra JF”, conta. Por lĆ”, aprende mais sobre noĆ§Ć£o corporal, tem aulas prĆ”ticas com porta-bandeira e tem a oportunidade de receber visitas ilustres para mais aprendizado. E isso tudo, ela concilia com o trabalho de tĆ©cnica de enfermagem, tendo muitas vezes que jĆ” iniciar o plantĆ£o no dia seguinte Ć s 6h. Desde entĆ£o, tambĆ©m passou a ser porta-bandeira do bloco ‘Eu e VocĆŖ’ e do Bloco do Batom, de Juiz de Fora, freelancer da Mocidade Independente da Vila Isabel de TrĆŖs Rios e Rainha da Banda Daki. Com tanta ligaĆ§Ć£o com o samba, tambĆ©m foi se envolvendo cada vez mais com o bloco IrmĆ£os Metralha, em que hoje atua como diretora e secretĆ”ria, e que traz uma relaĆ§Ć£o especial com o bairro em que vive, o Bandeirantes.
Um dos seus grandes orgulhos dentro do universo carnavalesco, e que uniu seu papel como profissional da saĆŗde e esse amor pelo samba, foi ter sido uma das fundadoras do bloco Locomotiva. “Eu trabalhava no Caps Liberdade, do Hospital UniversitĆ”rio, e vĆamos a vulnerabilidade social e a exclusĆ£o com os usuĆ”rios da saĆŗde mental. E o que melhor integra e alegra todo mundo? O carnaval. Fica todo mundo junto, vocĆŖ vĆŖ que todos se animam”, conta. Foi assim que ela e outros trabalhadores pensaram em criar o bloco, que inicialmente funcionaria sĆ³ nos arredores, atĆ© que se tornou um projeto maior. “Desfilamos no calƧadĆ£o. Foi lindo, trouxemos os nossos pacientes, reivindicamos o nosso lugar e pedimos por manicĆ“mio nunca mais. Realmente contra esse retrocesso”, diz.
Movimento cultural
O carnaval, como ela destaca, Ć© um movimento cultural que traz reflexos para todos os dias. AliĆ”s, Ć© um estilo de vida: “Quando meus pacientes estĆ£o mais tristes, eu estou sempre lĆ” pra animar e trazer meus mantras do samba. Sempre repito os lemas: ‘Erga sua cabeƧa, mexe o pĆ© e vai na fĆ©’ e ‘A vida Ć© pra quem sabe viver'”. Por isso, Ć© o ano inteiro de preparaĆ§Ć£o para que tudo ocorra da melhor maneira, e uma formaĆ§Ć£o que nĆ£o tem fim para tornar possĆvel que as mensagens mais importantes dessa cultura consigam ser devidamente passadas atravĆ©s do evento. “Eu acredito que o carnaval atinge todas as pessoas e de todas as classes. Ć o momento que vocĆŖ tem para falar sobre temas importantes, mostrar pra populaĆ§Ć£o problemas sociais do seu jeito. Ć com brilho e leveza, mas com muita forƧa”, diz. Exemplo disso, como ela mesma cita, foi o desfile da Portela, com ‘Um defeito de cor’, de Ana Maria GonƧalves, um livro que Liliane tambĆ©m leu e que destaca por sua importĆ¢ncia para a cultura brasileira.
O carnaval, para ela, Ć© uma forma de integrar as pessoas e tambĆ©m de valorizar as comunidades. Com o ‘IrmĆ£os Metralha’, sempre sĆ£o escolhidas figuras importantes para a cultura juiz-forana, e que sĆ£o homenageadas com enredos e com a alegria das pessoas. Como as escolas de samba, em sua visĆ£o, servem como pontos de reforƧo para a comunidade, tambĆ©m sĆ£o realizadas diversas aƧƵes sociais por esse bloco, que buscam justamente melhorar a qualidade de vida das pessoas. Apesar de toda essa importĆ¢ncia, como ela explica, o carnaval da cidade jĆ” passou por momentos difĆceis. Se fosse um paciente seu, o quadro seria o seguinte: “Nosso carnaval aqui vinha de um momento agonizante. Teve um perĆodo muito grave na UTI”. Esse momento a que ela se refere foi justamente desde 2017, quando Juiz de Fora ficou sem o desfile das escolas de samba – o que voltou a acontecer em 2023. Com essa volta, foi possĆvel, aos poucos, ir recuperando o interesse das pessoas e das geraƧƵes mais jovens.
Para ela, apesar desse retorno do interesse estar acontecendo de forma lenta, Ć© possĆvel ver o empenho de muitas pessoas em fazer dar certo. “A gente tem Ć³timos carnavalescos, pessoas que trabalham pra fazer isso ser possĆvel e com vontade. EntĆ£o tem que fortalecer”, ressalta. Ela destaca a importĆ¢ncia de aĆ§Ć£o do poder pĆŗblico e incentivos para isso, jĆ” que nĆ£o Ć© possĆvel fazer carnaval sem dinheiro para arcar com todos os custos. Uma das coisas de que mais gosta, por isso mesmo, Ć© ver como essa festa demanda trabalho conjunto e atenĆ§Ć£o a tudo, que deixam o resultado ainda mais prazeroso. “Quando comecei a trabalhar em barracĆ£o, ajudando com todos os detalhes, fui conhecer as dinĆ¢micas desse trabalho por trĆ”s do carnaval e tudo que precisa para colocar na rua.ā
Entre o cƩu e a terra
Hoje, Liliane vĆŖ bem que nĆ£o Ć© por acaso que se interessou pelo trabalho de porta-bandeiras, que parece sintetizar muito do que gosta e da responsabilidade que enxerga em ocupar espaƧos como esse. Apesar de todo o trabalho que essa funĆ§Ć£o exige, com fortalecimento muscular, desenvolvimento de resistĆŖncia fĆsica, ensaios pra aprender os passos e aulas, alĆ©m de estudos para compreender toda a parte cultural e histĆ³ria do carnaval, para ela, vale a pena. Ć algo que a faz sempre pensar, e que considera que tem um papel essencial na cultura brasileira.
AlĆ©m de carregar a responsabilidade de algo tĆ£o importante para o seu paĆs e tambĆ©m trazer forƧa para o carnaval de sua cidade, enxerga que ser quem ela Ć© tambĆ©m Ć© algo que espera honrar a histĆ³ria da sua famĆlia. Seu pai, hoje falecido, saberia que sua filha leva esse legado. E Ć© isso que as porta-bandeiras fazem: “A porta-bandeira carrega o que hĆ” de mais sagrado, porque aquele pavilhĆ£o e aquela bandeira trazem toda a ancestralidade daquela escola. Ela carrega o respeito e essa nobreza. Faz a conexĆ£o de cĆ©u e terra atravĆ©s de seu mastro, e Ć© por isso que a porta-bandeira nĆ£o tira os pĆ©s do chĆ£o”, diz.