‘Bets’ e ‘Jogo do Tigrinho’: diferenças, legalidade e riscos
Regulamentação das apostas esportivas on-line joga nova luz sobre práticas do tipo loteria e sobre os jogos de azar
No último mês, as discussões sobre apostas esportivas e sobre o “Jogo do Tigrinho”, cujo nome original é “Fortune Tiger”, dominaram as redes sociais. Isso porque a ampla divulgação dessas plataformas como ferramenta de enriquecimento, de acordo com publicidades de influenciadores, fez com que centenas de milhares de pessoas jogassem e perdessem suas economias, sem ao menos saber os reais riscos do que estavam fazendo. Diferentes em sua estrutura e propósito, no entanto, as “bets” e os jogos de azar vão passar por novas regulamentações.
Enquanto as apostas se aproximam mais do funcionamento de uma loteria, o “Fortune Tiger” se enquadra na categoria dos jogos de azar, que são proibidos no Brasil. Esses jogos são aqueles que funcionam com a mesma lógica dos caça-níqueis e dos cassinos, por exemplo. Como explica a advogada especialista em direito público Paula Assumpção, esses são aqueles jogos nos quais não tem como prever, a partir da habilidade do jogador, o ganho ou a perda. “É diferente dos jogos em que você pode treinar, aprimorar-se e assim se tornar vitorioso. No jogo de azar, o que dá a vitória para um ou para outro é a aleatoriedade, e é exatamente o caso do jogador não ter controle algum no êxito no jogo”, explica.
O objetivo desse jogo é que o participante faça uma combinação de três figuras iguais nas fileiras que aparecem em sua tela. Da mesma forma que ele, também existem outros jogos, como “Spaceman”, “Aviator” e “Mines”, que dentro de diferentes plataformas funcionam com o objetivo de completar as fileiras. Esse tipo de jogo não é desenvolvido pelas casas de apostas, mas geralmente é divulgado nesses sites, inclusive em categorias de “cassino on-line”, que, pela lei são proibidos.
Papel dos influenciadores
Como explica o advogado Cláudio Santos, professor do curso de Direito da Estácio e sócio-fundador do escritório DMS Advogados, de tempos em tempos, no Brasil, há iniciativas que querem que os jogos de azar voltem a ser legalizados no país. Por isso, às vezes esses jogos aparecem com ‘roupagens’ diferentes e aproveitam brechas para se popularizar. Para ele, no entanto, o que diferenciou esse caso, ao longo de 2023, foi a extensa campanha feita por influenciadores digitais que faturaram grandes quantias com essa divulgação. “Há uma grande chance desse jogo ser um golpe, porque tudo indica que havia uma manipulação dos resultados aliada com uma promessa de ganhos certos e fáceis. Esse talvez seja o maior problema. Qualquer promessa de ganho certo é violação da legislação, porque é contrário à natureza dos jogos”, explica.
Regulamentação nova das ‘bets’
Apesar de legais, as casas de apostas não estavam regulamentadas, e por isso não pagavam impostos e nem eram fiscalizadas pelos órgãos brasileiros. Em 30 de dezembro, no entanto, o presidente Lula sancionou, com vetos, a lei que regulamenta as apostas esportivas on-line, conhecidas como “bets”. Nessas apostas de quota fixa, normalmente em eventos esportivos, o apostador fica sabendo de antemão a taxa de retorno. As empresas podem ficar com 88% do faturamento bruto para o custeio da atividade, e sobre o produto da arrecadação passam a ser destinadas diferentes quantias: 2% à Contribuição para a Seguridade Social; 10% divididos entre áreas como educação, saúde, turismo, segurança pública e esporte.
O relator no Senado, Ângelo Coronel, do PSD da Bahia, explicou que a regulamentação era necessária para que as empresas que já praticavam esse tipo de atividade no Brasil recolhessem os impostos que agora serão devidos. Como esclarece Cláudio, no entanto, essa nova regulamentação será complexa. “Trata de questões de tributação das casas de apostas e das próprias apostas, taxa de fiscalização, participação dos brasileiros como operadores das casas para se ter um capital social brasileiro, políticas corporativas, integridade e prevenção a fraude, publicidade e transações de pagamento”, conta. No momento, como houve veto, essas partes voltam ao Congresso para que os parlamentares possam apreciar os vetos do presidente e, se entenderem por bem, derrubar esses vetos.
Uma das principais mudanças que vão ocorrer é quanto à publicidade dessas práticas, justamente devido ao que aconteceu a partir da divulgação dos influenciadores. “As novas regras também envolvem a figura dos influenciadores, marcas e símbolos que envolvem as apostas. Precisa ser identificado que é uma peça publicitária, trazer informações verdadeiras, tem que informar as reais possibilidades de ganho e de perda do dinheiro envolvido e ter as informações completas e essenciais sobre o jogo”, explica Paula. Outro diferencial é que, a partir de agora, os agentes operadores das casas precisam implementar mecanismos de segurança e integridade para realizar as apostas, assim como proteção de dados dos apostadores.
Restrições aos jogos
Ao contrário do que muitas pessoas também pensam, como explica Paula, nem todos estão aptos a participar desses jogos. Isso porque as pessoas devem respeitar tanto a lei aprovada pela Câmara quanto também a questão do Código Civil. “Em relação à lei, não pode estar envolvido em apostas quando você é dirigente de clube de futebol, empresário (de futebol), integrante de federação, treinador, jogador, árbitro, membro de comissão técnica ou agente público ligado à fiscalização e à regulamentação desses jogos”, explica.
Há também a previsão do Código Civil: os jogos não podem ser feitos por menores de 18 anos e também é preciso ter cuidado com pessoas com interdição, que não estão em plena capacidade de decisão e ainda com a questão da prodigalidade, quando não se tem controle sobre a questão financeira. Como Cláudio também ressalta, há uma patologia chamada “ludopatia”, ou seja, vício em jogos. As pessoas com essa condição também não podem apostar ou participar de jogos de azar.
Vício em jogos é a terceira maior dependência no país
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o vício em jogos é a terceira dependência mais comum no Brasil, perdendo apenas para o álcool e o tabaco. Esse é um transtorno grave, como deixa claro a professora do curso de psicologia da Estácio, Anna Paula Gomes. “Em seus relatos, as pessoas que sofrem com o transtorno do jogo afirmam que os prejuízos vão além da área financeira, interferindo na vida pessoal, profissional e familiar: a pessoa deixa atividades antes valorizadas para jogar, há piora da situação financeira a médio prazo, menor produtividade no trabalho e ausência nas tarefas familiares.”
Como ela afirma, no entanto, jogar casualmente ou moderadamente não é um problema. Mas há alguns sinais que devem começar a preocupar quem realiza essa prática: “Preocupação frequente com jogo; esforço repetido e sem sucesso de controlar, diminuir ou parar de jogar; necessidade de aumentar os riscos ou apostas para alcançar o prazer desejado; inquietude e irritabilidade quando não está jogando; e ainda ameaçar ou mesmo perder relacionamentos significativos e oportunidades de trabalho, educação ou carreira por causa do jogo; alívio de outros problemas jogando; mentiras frequentes para esconder o envolvimento com jogo”. Segundo Anna Paula, inclusive, nos casos em que há uma perda significativa de dinheiro, é comum que os jogadores tentem “compensar” jogando ainda mais para recuperar o que foi perdido.
Para diagnosticar e tratar casos assim, ela explica que é levada em conta a quantidade de tempo gasto na atividade de “jogar”, a extensão da interferência desta nos domínios sociais (família, profissão, relacionamentos), mudanças drásticas nos sentimentos e nos comportamentos: expressão de satisfação/animação ao ganhar e de apatia e tristeza ao perder; expressão de comportamento inadequado ou criminoso para manter o vício (por exemplo, mentir para a família, faltar ao trabalho, roubar para manter o vício). Já o tratamento para o jogo patológico depende de cada caso, mas pode conter consultas frequentes com um psiquiatra, sessões de psicoterapia, participação em grupos de autoajuda e até mesmo o uso de medicamentos. “O tratamento é focado na melhora da condição de adicto ao jogo para que possa viver uma vida com mais qualidade”, diz a psicóloga.
Benefícios da regulamentação das apostas
Para Anna Paula, regulamentar as casas de apostas traz avanços para a população. “Antes, se a pessoa levasse algum prejuízo irregular nas casas de apostas, como se ela quebrasse, desaparecesse com o dinheiro ou a pessoa não recebesse o que ganhou, não tinha o que fazer. Agora, é possível”, explica. Outro diferencial da regulamentação é que, a partir dela, o Governo pode criar toda uma estrutura em relação ao jogo, inclusive uma campanha em relação aos riscos envolvidos, com alerta em relação aos prejuízos e essa compulsividade, e ainda orientações pra prevenir que a pessoa caia em golpes. Para os indivíduos que ainda desejam apostar, é possível ter mais segurança. “Dê preferência para as empresas que são regulamentadas e brasileiras. Caso ocorra algum tipo de violação do seu direito, você terá uma legislação e um Judiciário que podem atuar e fazer com que você recupere o seu prejuízo”, alerta a psicóloga.