Todas as gentes: programa Gente em Primeiro Lugar é referência de inclusão
Do total de inscritos, 58 alunos são Pessoas Com Deficiência (PCD) ou com Transtorno do Espectro Autista (TEA)
O Gente em Primeiro Lugar tem como principal foco a democratização do acesso à cultura em Juiz de Fora. A proposta é, por meio da arte e da cultura, promover a inclusão e ainda oferecer oportunidade para novos talentos que diariamente são descobertos no programa, que tem como sede administrativa o Centro Cultural Dnar Rocha. Além desse espaço, o Gente em Primeiro Lugar funciona em mais 37 polos espalhados por todas as regiões da cidade, também oferecendo diversas aulas a pessoas de todas as idades. As oficinas oferecidas são de grafite, moda, artesanato, pintura em tela, capoeira, balé, danças populares e urbanas, samba, teatro, violão, canto coral, teclado, percussão, informática, novas tecnologias, audiovisual e designer gráfico.
Ele é mantido pela Prefeitura de Juiz de Fora, com gestão da Funalfa e prestação de serviço feita pela Associação Municipal de Apoio Comunitário (Amac). No Dnar Rocha são, ao todo, 727 alunos matriculados neste período considerado de “baixa”, já que é comum que alguns alunos se afastem do programa nesta época do ano. Mas, no começo dos semestres, o número chega a 900 pessoas inscritas. Atualmente, dentre os inscritos nas aulas da sede administrativa, 58 alunos são Pessoas Com Deficiência (PCD) ou com Transtorno do Espectro Autista (TEA), o que representa quase 8% do total de inscritos. Além de ser uma referência na promoção de um acesso facilitado e gratuito à cultura, com o tempo, o programa Gente em Primeiro Lugar tem se tornado, também, referência na inclusão.
De acordo com Fernando Valério, coordenador geral do Gente em Primeiro Lugar, esse processo de perceber que o programa era inclusivo, desde sua idealização, foi natural. Mas a confirmação veio, principalmente, a partir do momento em que índices foram sendo levantados, no princípio, para prestação de contas. “Junto com o escopo do projeto, existem algumas estatísticas e alguns índices que vamos levantando ao longo do ano para que a gente tenha alguns parâmetros e alguns pareceres de como está sendo feita a execução. Começamos a identificar nesses índices que tínhamos um grande número de alunos que se declaravam pessoas com deficiência. Porque nós começamos a sinalizar isso nos documentos e nos formulários que utilizávamos”. Naquele momento, em 2021, eram 90 PCDs e pessoas com TEA inscritos, de acordo com Fernando.
A partir desse dado, o coordenador conta que a equipe do programa passou a pensar no que estava sendo oferecido naquelas aulas e como essa inclusão, de fato, funcionava. Fernando conta que foi possível identificar várias crianças com o TEA. “E nós temos dois possíveis dificultadores para uma pessoas com o TEA: o trem e as oficinas de percussão e capoeira que têm barulho. Mas vimos que, quando nós os acolhemos do nosso jeito didático, eles começaram a conviver com aquilo que, teoricamente, para os pesquisadores, é um complicador. Hoje, nossos alunos com espectro autista frequentam aulas de percussão, capoeira e gostam do atabaque. O trem passa e está tudo bem. Os pais e as mães começaram a perceber isso também.” Esse processo durante esses anos foi sendo naturalizado de forma que, inclusive, vários responsáveis têm procurado o Gente em Primeiro Lugar exatamente porque já foi mostrado que o programa é inclusivo.
Apesar disso, Fernando ainda aponta para algumas situações que dificultam o acesso de PCDs ao próprio prédio da sede administrativa, como, por exemplo, a escada necessária para que os alunos cheguem às aulas que são oferecidas no segundo andar. “Mas até isso a gente consegue contornar: os alunos ajudam, toda a equipe auxilia e o prédio consegue receber todo mundo. Eu penso que, de fato, a gente está promovendo esse lugar da democratização da cultura, dentro dos nossos limites. Dentro dos nossos caminhos, a gente consegue tornar essa inclusão possível”, afirma. E continua: “Acho que o caminho para a inclusão é identificar a demanda, entender as ferramentas e a instrumentalização que você tem para atender a demanda, entender os limites, mas não deixar de colocar a pessoa em primeiro lugar, que é a filosofia que eu tenho desde quando assumi a coordenação. Esse nome é forte. A pessoa precisa estar em primeiro lugar, e, para isso, é preciso entender a demanda de cada uma dessas gentes, e isso dentro do que a gente tem”. E o caminho é, principalmente, ouvir cada pessoa e, no caso das crianças, os responsáveis, que são orientados a acompanhar as aulas. “O processo de diversidade e inclusão caminha pelo lugar do diálogo.”
‘A capoeira se adapta’
Desde o momento em que foram identificados 90 PCDs e pessoas com TEA no programa, prontamente foi procurada uma orientação, para que a inclusão acontecesse de fato. A equipe recebeu apoio do Conselho da Pessoa com Deficiência, que levou as informações necessárias para esse funcionamento. Mas, além disso, Fernando Valério conta que os próprios articuladores culturais, responsáveis pelas aulas, têm procurado especialização a partir de outros meios.
“Tem articulador que prepara aula de pandeiro, por exemplo, para aluno que é surdo. E vem da busca dele. Na reunião interna, eles compartilham isso, e todo mundo vai aprendendo.” Foi o caso, por exemplo, do articulador cultural Pedro Henrique da Silva Casteliani, que é professor de capoeira no Gente em Primeiro Lugar.
O próprio Pedro confessa que achava que a capoeira era uma prática mais exclusiva que inclusiva, por causa da sua própria vivência. “E, quando eu chego aqui (no Gente em Primeiro Lugar), eu me deparo com uma turma em que a maioria era PCD ou autista.” Ainda hoje, a capoeira é a aula em que mais PCDs e pessoas com TEA são inscritas. “E foi um aprendizado, porque eu vi que a capoeira se adapta. Eu consigo adaptar o movimento para a necessidade que a pessoa me mostra”, afirma.
Para ele, as mudanças foram se apresentando no dia a dia mesmo. “Por exemplo, eu tenho um aluno com TEA e com Síndrome de Down. E eu fui percebendo que ele foca mais na parte visual. E eu entendi que era necessário mostrar cada movimento. Ao invés de eu só falar, eu mostrava. E ele copiava e ia fazendo. Depois, com o tempo, ele até se acostumou com o som. Foi um processo de entender qual seria a melhor forma de ele aprender mesmo”. E continua: “E capoeira é uma coisa muito natural. Eu não trabalho o certo. Eu trabalho o natural. Então, é levantar a perna, não importa se para dentro ou para fora. Eu não tento colocar os alunos em um padrão. É intuitiva. E os alunos agem de uma maneira natural mesmo”. Para isso, cada aula é de um jeito, a depender das demandas e no que ele analisa naquele dia. “Eu mudei minha visão como capoeirista e profissional da capoeira aqui dentro. Porque eu sempre pensava mesmo no rendimento. Mas aqui eu passei a enxergar a capoeira como ferramenta de inserção e transformação. Eu estou aqui para agregar mesmo. E cada um tem seu tempo. A gente vai adaptando e respeitando.”
Exemplo disso é Juan Elias, de 12 anos. Sua mãe, Leila Verônica, é que fazia aula de violão no Gente em Primeiro Lugar. Decidiu colocar seu filho na capoeira porque percebia que ele era um menino mais quieto, caseiro. Além disso, como não tem a mão direita, percebia que ele tinha um receio quando encontrava outras pessoas. Quando abriu vaga na capoeira, não teve dúvidas. “E isso foi muito bom para ele. Hoje, ele se comunica com mais facilidade. A capoeira fez muito bem para ele, pois não tem mais vergonha da deficiência dele. Antes ele tinha, ele ficava muito com a mãozinha no bolso. Hoje ele não fica mais”, afirma.
Além das aulas que são inclusivas, Leila conta que o carinho de Pedro com Juan foi fundamental: “O Pedro foi uma luz no caminho do Juan. E hoje eu sei que é uma profissão que o Juan quer levar para a vida. Porque através da capoeira, eu descobri que eu tenho um filho capoeirista. Porque ele quer ser capoeirista. Ele tem o Pedro como motivador, como exemplo e como mestre”. E finaliza: “Quando ele chega ao Dnar Rocha é só alegria. Todo mundo ajuda meu filho. E eu vejo o desenvolvimento do meu filho todos os dias. Eu vejo a alegria quando ele coloca o uniforme. Quando ele sabe que tem capoeira, ele já logo coloca a roupa dele, e ele mesmo fala: ‘Mãe, está quase na hora da aula’. Eu vejo o interesse dele na capoeira e o quanto ele se desenvolveu enquanto pessoa, enquanto ser humano com essa prática”.
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