Conheça o Granbery, um bairro de memória
Moradores contam as histórias da comunidade, na região Central de Juiz de Fora, que já foi chamada de Princesa Isabel e conhecida pela tradição no futebol
“Hoje, se fala Bairro Granbery. Antes, quando perguntava de onde eu era, eu respondia que era do Princesa Isabel”, conta Guto Carvalho com os olhos marejados, na rua onde ele nasceu, a Princesa Isabel, sobre o tempo em que a via era de terra. Pequeno, Guto vivia de um campo para o outro. Naquela época, há 60 anos, pelo menos, além das casinhas no bairro, então Princesa Isabel, o que não faltava era lugar para jogar bola. Eduardo Augusto Nascimento também viveu essa época.
E, assim como o Guto, foi jogador profissional: do bairro para outros times da cidade, inclusive de fora. Tudo isso porque ali era um lugar fértil para isso. A quantidade de times era praticamente infinita. “Tinha o Princesa Isabel, que era do meu pai, o Zé Gasolina, que todo mundo antigo do bairro conhece. Tinha o Granada, do Jairo. Cruzeiro do Sul, do Moacir. Margarida foi um dos últimos a aparecer. Tinha o time Brotinho também, do Rato. O Cruz-maltino. Meu pai tinha cinco times, para todas as idades. E tinha muito campo. Uma hora dessa, a molecada estava jogando bola.”
Uma geração inteira foi impactada por esse movimento futebolístico. E é por isso que, quando se pergunta como era o bairro antigamente, as respostas são quase sempre relacionadas a isso. “O Granbery já teve vários times de várzea. Tinha uns seis ou sete e todos recheados de bons jogadores. E saíram mesmo bons jogadores para os principais times da cidade. Foi um celeiro de bons jogadores. O bairro tem essa característica, que marcou um tempo. Era tudo muito saudável. A gente jogava outras coisas também, pelo mato afora, inclusive. Foi um bairro que tinha uma característica muito voltada para a saúde mental da molecada”, completa Waltinho Pecci Maddalena.
Esses três, inclusive, já jogaram um bocado de partidas juntos. Não importava o dia: estavam eles lá, com uma bola na mão, partindo para qualquer um dos campos que tinham por ali. Eduardo, inclusive, conta um caso que envolve o Waltinho. “Aqui, tinha a Rua de Cima e a Rua debaixo. A de cima era a Princesa Isabel e a debaixo era a Antônio Ribeiro. Eu morava na Ribeiro e o Waltinho na Princesa Isabel. A gente estava perdendo um jogo de seis a zero para a de cima. A gente virou o jogo e ficou 6 a 9. O Waltinho ficou com raiva de mim. Queria me tampar uma pedra. Mas a rivalidade era só dentro do campo”, ri. Os três contam com detalhes cada uma das partidas: lembram quem jogava, as escalações, os lugares onde foram levando o nome do bairro. E os três guardam um carinho imenso pelo bairro. Suas famílias viram o bairro crescer e eles decidiram que era ali mesmo que ficaria. “Porque melhor que aqui não tem”, a resposta é consenso. Mas o que tem, então, de tão mágico no Granbery?
As ruas do bairro eram usadas como parque de diversão. “Aquele morro lá atrás do Granbery era tudo mata. O final da Rua Princesa Isabel era tudo um pasto, onde a gente brincava”, lembra Waltinho. “Tinha prédio nenhum. Tinha só mato. A gente descia de canoa de coqueiro. A gente descia lá de cima de carrinho de rolimã. Eu fui moleque mesmo, da rua, do mato, de andar descalço. A mina de Caulim era famosa. Falavam que tinha uma areia movediça lá, que puxava as crianças. E a gente ia para lá. E nunca foi puxado”, completa Guto. Essa Mina de Caulim, inclusive, era o lugar dos sonhos de Márcia Nascimento Neves, sobrinha de Eduardo e filha de Mariza Nascimento Neves, uma das moradoras mais antigas do Granbery. Márcia conta: “Tinha a Mina de Caulim que saía na Santa Casa. Era o nosso sonho de consumo lá. Quando chovia, a gente brincava na enxurrada. A gente jogava chinelo para o outro correr e pegar do outro lado. Era a nossa diversão”.
Também dentre as matas que envolviam o bairro, Mariza lembra que tinha um caminho por trás que dava exatamente no lugar onde queria: a quadra Juventude Imperial. Tudo para cortar o caminho e fazer com que o divertimento estivesse ainda mais próximo. Apesar de ser uma das mais antigas, ela é a única que não sente tanta saudade do passado porque prefere agora. “Mais movimentado. Eu gosto”. Lembra, ainda, da forma como seus pais foram parar no Granbery: “Minha mãe veio de Guarani e meu pai era de Piau. Eles vieram para arranjar um serviço melhor aqui e arranjou no Granbery (a escola). Ele era cozinheiro de lá. E ele gostava de futebol também. A gente foi criado lá em cima na Rua Santos Dumont”. Depois, eles foram para a Antônio Ribeiro onde ficaram por cerca de 40 anos.
De frente para a casa, o lugar onde Márcia cresceu, tinha um dos campos do bairro. “Como tinha o campo ali e um em frente a nossa casa, eu ficava na janela sentada, vendo o meu avô conduzir o time, e minha mãe ou minha avó segurando para eu assistir ao jogo da janela. Era bem pertinho. Em frente. Não tinha calçamento nem nada”. Essa paixão ficou pela família e é uma coisa que perpetua mesmo pelo bairro, exatamente por causa da tradição. Referência do bairro, inclusive, sempre foi o Sô Zé Gasolina, pai de Eduardo e Mariza. Trata-se de uma família tão tradicional que justifica, por exemplo, o fato de que, todo mundo que passa pelos irmãos, faz questão de parar, cumprimentar e conversar.
As raízes
E é por causa das raízes que Waltinho se mantém no bairro. “Eu ainda estou no Granbery por causa das minhas raízes. Meus pais são italianos, vieram da Itália direto para o Granbery. Minhas raízes estão fincadas ali. Quando eles vieram, já tinham alguns italianos morando no Granbery e por isso eles vieram para aqui. Meu pai comprou uma casa que está de pé até hoje”, rememora. Fato parecido com o que aconteceu com a família de Guto: seu avô paterno foi trabalhar em uma fábrica de meias e, depois de um tempo, acabou construindo a sua. Apesar de não morar mais lá, faz questão de sempre estar pelo Granbery. “Eu nunca deixei aqui. Não tem como. Não larga a raiz não. É difícil. A minha raiz está aqui. Eu consegui ser jogador por causa daqui. Eu fui nascido e criado dentro do futebol.”
Quando era mais novos, era comum que todo mundo conhecesse todo mundo. Tanto que Mariza fala que, às vezes, tem gente que a cumprimenta e ela nem reconhece mais. Mas retribui. Como diz Guto: “Nada como poder olhar ao redor e reconhecer a pessoa. Sentar para conversar”. E Márcia compartilha desse sentimento: uma de suas maiores saudades é sentar e conversar pelas esquinas do Granbery: “O que eu mais sinto falta é dos momentos que eu tinha com os meus amigos: ficar na rua, batendo papo, ficar até tarde conversando na esquina”. E é falando de esquina que ela lembra de um outro costume que vai além do futebol: o Judas do domingo da Semana Santa. “Você não tem noção do que era. A gente ficava a semana inteira esperando chegar domingo para o Judas ser queimado. Era a sensação do bairro, a gente ficava pensando quem ia ser o Judas.”
Eduardo conta o esquema: “A gente marcava um e queimava. Ele ficava na esquina da Princesa Isabel. O cara lia o testamento, mas não falava o nome de ninguém não”. “Mas todo mundo sabia quem era”, ri Márcia. “Ah! E tinha as festas juninas, que eram muito boas”, recorda Mariza. Elas, em sua maioria, eram feitas pela família de Guto e movimentavam as famílias do bairro todo.
Preservar a memória
Como um álbum de fotografia, cada lembrança dessa é uma foto registrada na memória. E é por isso que eles lutam para que isso não se perca com o tempo. “É um bairro muito família e a gente quer preservar isso”, afirma Waltinho. E são essas memórias que fazem o bairro ser ainda tão amado por seus moradores. “Claro que estar próximo ao Centro é uma questão. Mas tem mesmo esse espírito de acolhimento. Nossa história de vida está aqui. Tanto que as mudanças que estão acontecendo tem causado um impacto forte na gente. Você sente que o bairro está ganhando uma outra característica. Para a gente que está aqui desde pequenininho, isso marca muito. E é ruim porque vai descaracterizando essa história. Por isso que eu acho que a gente precisava escrever essa história para deixar registrado. Inclusive, os personagens, as pessoas que são marcantes, no bairro. E isso dá muita saudade. Tem saudosismo, sim. Mas a gente sabe que nunca vai ser como era antes. A gente deixar registrado isso para as gerações que estão chegando é importante porque isso não pode se perder. As experiências que a gente teve, as histórias que eles (sua mãe e seu tio) me contaram, minha avó e meu avô. Se não registrar, vai ficar perdido”, acredita Márcia.
Existe mesmo esse movimento de união e ele se mostrou ainda mais forte com a possibilidade da venda do campo do Instituto Granbery. Guto e Waltinho são os principais nomes que encabeçam o movimento contrário à venda. “Eu acho que essa luta pela preservação da memória é um consenso, mas nem todo mundo entra para lutar. Eu me encarreguei de fazer isso por acaso. Quando eu vi que o campo podia ser vendido, eu quis saber o que estava acontecendo”, comenta Waltinho. Enquanto Guto reitera: “Acabar com o campo é apagar uma história nossa. É uma história de vida que começou na Princesa Isabel. São poucos os que tiveram essa oportunidade que eu tive: morar na Princesa Isabel, no Bairro Granbery, estudar no Bairro Granbery, ser jogador de futebol do Bairro Granbery, depois professor de futebol e conviver aqui ainda. A minha história é toda aqui”.
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