Pessoas trans e não-binárias buscam espaço no esporte em Juiz de Fora
Atletas da cidade falam sobre dificuldades e da luta contra o preconceito também no meio esportivo
Na sexta-feira (18), começava o Rainbow Fest Brasil 2023 – um dos principais eventos do Brasil que têm como foco a cultura LGBTQIAPN+ – na Praça Antônio Carlos, em Juiz de Fora. Na mesma data, de maneira oposta à celebração da existência e validação desses corpos, a Federação Internacional de Xadrez anunciava a proibição de mulheres trans em torneios femininos, por alegar “vantagens injustas”. Seja a âmbito mundial ou local, pessoas trans e não-binárias precisam lidar não só com a falta de espaço nas diferentes modalidades esportivas, mas também com o preconceito diário daqueles que não enxergam o esporte como ele deveria ser visto – como um ambiente de respeito mútuo e espírito coletivo.
Considerando esse cenário, a Tribuna entrevistou três atletas de Juiz de Fora, os homens trans Brayan Damazio, de 26 anos, e Gabriel Pompei, 22, e Anirã Aguiar, 27, que se identifica como não-binário. Todos possuem em comum a paixão pelos exercícios físicos desde ainda crianças, mas sempre tiveram que lidar com os julgamentos e preconceitos de pessoas cis – parte majoritária nas modalidades esportivas. Na entrevista, eles relatam algumas de suas vivências e opinam sobre o que pode ser feito para que o grupo seja, de fato, inserido na sociedade – e, consequentemente, no esporte.
‘Me escondo para me proteger’
Morador do Bairro São Mateus, na Zona Sul, Brayan Damazio, 26, iniciou o futsal ainda nas aulas de educação física da escola, época que ainda jogava com meninas. Depois de um período sem praticar esporte, decidiu ir a uma pelada com os amigos da academia. “Eles não sabiam que eu era trans. Escondia isso pelo medo do preconceito e de não ser aceito. Prefiro evitar dizer que sou trans em alguns lugares, é uma forma de me proteger do preconceito e do tratamento ruim das pessoas”, relata.
No entendimento do jovem, homens cis e trans podem jogar juntos, desde que haja respeito entre as partes. “Precisamos de espaços para treinos e ações que tragam visibilidade e igualdade. Nós somos seres humanos, com vontades, talentos e gostos”, enfatiza. Pela falta de equipes que, de fato, integrem a população trans, Brayan optou por fazer parte da Transtornados Futebol Clube, única equipe de Juiz de Fora formada, exclusivamente, por homens trans e não binários.
“Esse time me trouxe novos amigos e é uma forma de acabar com o sedentarismo. Posso esvaziar minha mente, ser eu mesmo sem medo, sem me esconder. É um meio com pessoas que me entendem, consigo me sentir em casa, me divirto, é meu refúgio e minha família”, reconhece.
‘Reflexo do que acontece nas ruas’
Também morado do Bairro São Mateus, Gabriel Pompei, 22, deu início à prática esportiva, conforme conta, com a natação, quando era bem pequeno. Depois, migrou para esportes de luta, como capoeira, MMA e Muay Thai. Na escola, também praticava futsal, basquete, handebol e tênis de mesa. Quando entrou na faculdade, permaneceu treinando os esportes que já tinha habilidade técnica e participou de algumas edições do Intermed Minas e da Copa Rio Minas, sempre em times femininos com mulheres cis.
Recentemente, entretanto, ele iniciou o tratamento com uso de testosterona e precisou parar com os esportes. “Não posso continuar como vinha sendo desde pequeno. Percebi que meu condicionamento físico dentro do esporte evoluiu bastante rápido após iniciado os hormônios, mas nunca participei de nenhum time composto por homens cis, porque o preconceito dificulta nossa presença nesses locais”, afirma.
Dessa forma, o jovem é outro que se juntou ao time Transtornados FC. “Me acolheram muito bem, e agora, posso permanecer treinando um esporte que sempre fui apaixonado. Até que a parte social esteja mais tranquila para nós, pessoas trans, os momentos de lazer dentro do esporte eu reservo para acontecer entre os que também passam pela transição”, conta.
Para que pessoas trans possam estar inseridas de forma definitiva no esporte, Gabriel clama por humanização e respeito social. “O que temos hoje é um cenário de covardia tão grande, que a não aceitação no esporte é, além da ignorância, um reflexo do que acontece nas ruas, de toda violência física, verbal, mental e emocional.”
‘Nós é que perdemos espaço’
Anirã Aguiar, 27, morador do Bairro São Pedro, Cidade Alta, se identifica como não-binário, e também deu seus primeiros chutes a gol na escola, em times femininos, com mulheres cis. Mas, aos poucos, esses espaços foram se tornando desconfortáveis, expõe o estudante. “Em times femininos, havia falta de incentivo e estrutura, e nos masculinos, preconceito e misoginia. Eram ambientes totalmente cisgêneros e normativos.”
Conforme compreende Anirã, o preconceito é explícito, quando se escuta comentários e xingamentos pejorativos, mas também ocorre de forma velada. “Uma das coisas que mais me incomodava em jogar com homens cis é que nunca recebia bola, não conseguia trabalhar passe, sentia de fato uma recusa mesmo velada em relação à minha presença. Tipo um boicote silencioso. O que era para ser um lazer acabava se tornando uma frustração”, lamenta.
Na avaliação de Anirã, para que pessoas trans e não-binárias tenham reconhecimento no esporte é preciso que eles sejam aceitos em outros espaços. “O Brasil é país que mais mata travestis e mulheres trans no mundo. A maioria das pessoas trans encontra dificuldades no acesso à saúde, à educação, até ao próprio nome, ou seja, ao básico. A raiz do problema está bem mais embaixo”, analisa ele, que também critica o senso comum de que pessoas trans estariam ocupando lugares de outros atletas.
“A realidade é o contrário, nós é que perdemos espaços. Somos nós que temos que abrir mão de fazer o que gostamos porque não somos aceitos. Não existe alguma intenção maliciosa na nossa participação”, reitera. “Ser trans não é nada de outro mundo, somos pessoas reais e queremos fazer parte da sociedade como todos. Mas, ainda é necessário construir espaços só para nós, para que a gente possa ser protagonista, conversar sobre nossas experiências, se sentir parte de uma comunidade”, aponta Anirã, que também joga pelo Transtornados FC.
Em Juiz de Fora
Questionada pela Tribuna sobre quais seriam as ações para promover a inclusão de pessoas trans e não-binárias nos esportes em Juiz de Fora, a Secretaria de Esporte e Lazer (SEL) da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) respondeu em nota que “na inauguração do Ginásio Municipal Jornalista Antônio Marcos houve um jogo amistoso da equipe Transtornados Futebol Clube, time de futebol trans masculino de Juiz de Fora. Além disso, a SEL empresta o ginásio da secretaria semanalmente para a equipe. Informamos ainda que nossas ações estão abertas a qualquer gênero, mantendo diálogos com todas e todos”.
Sem regulamentação
Atualmente, apesar de o Comitê Olímpico Internacional (COI) – responsável por liderar o movimento olímpico – ter alguma diretrizes sobre o assunto, o COI não possui um regulamento que defina os critérios de elegibilidade para cada modalidade esportiva, e dessa forma, dá a liberdade para cada federação esportiva regulamentar e estabelecer suas próprias exigências sobre o assunto.
Assim, as decisões têm sido antagônicas: a Associação Mundial de Atletismo proibiu atletas trans de competirem em jogos de elite, enquanto a World Aquatics, fundação responsável por regular a natação, criou uma “categoria aberta” no intuito de abranger os atletas transgêneros.
Já o próprio COI estabelece que o nível de testosterona das mulheres trans esteja abaixo de dez nanomol por litro de sangue um ano antes da primeira competição e durante a carreira esportiva, sob risco de punição se a regra for quebrada. O comitê também possui um guia denominado “Justiça, inclusão e não discriminação com base na identidade de gênero e variação de sexo” para inclusão e participação dos atleta trans. São dez diretrizes básicas, como o direito à privacidade, prevenção de danos, não presunção de vantagem e primazia da saúde e autonomia.
Análise médica
Recentemente, a Associação Mundial de Atletismo proibiu atletas trans de competirem em jogos de elite, sob a alegação de se manter “justiça” entre atletas e guiando as decisões a partir da “ciência no tocante à performance física”. Sobre a questão biológica, a Tribuna ouviu as médicas endocrinologistas do Hospital Universitário da UFJF (HU/UFJF) Christianne Leal e Danielle Ezequiel. Em entrevista conjunta, elas ponderam que o assunto é “polêmico”, e que só tem sido mais estudado atualmente. As médicas relatam, ainda, que não têm atendido nenhum atleta trans.
No caso de homens trans, as profissionais ressaltam que o sexo biológico masculino é exposto ao hormônio testosterona, que promove maior desempenho físico, massa muscular, óssea, força e capacidade cardiorrespiratória, permitindo um melhor desempenho nas competições. “Sendo assim, um homem trans, utilizando a reposição de testosterona exógena, dependendo do tipo da formulação de testosterona, da dose, do tempo de utilização e do intervalo de tempo após aplicação, pode interferir e promover maior ou menor desempenho físico.”
Em relação a mulheres trans, as médicas asseguram que a possibilidade de “levarem vantagem” depende de quanto tempo a mulher faz a hormonoterapia cruzada. “Visto que o sexo biológico masculino, devido à ação da testosterona, mantém uma memória muscular do tempo, em que a massa óssea e muscular foi exposta a este hormônio. Existem muitos pontos a se considerar no processo transexualizador, inclusive o estigma social e o preconceito. As organizações de esporte do mundo deveriam se reunir e chegar a um consenso baseado em evidências científicas, evitando assim a discriminação, tentando fazer um posicionamento que não tenha viés e que se alinhe com as políticas dos esportes”, consideram.