Quem ama não mata!
“(…) a luta pelo fim da violência contra a mulher, em todas as suas formas, tem sido uma necessidade constante.”
No primeiro dia de agosto, mês destinado à conscientização no combate à violência contra a mulher, o Supremo Tribunal Federal brindou a sociedade brasileira com uma decisão histórica, tanto pela sua importância, como pelo seu simbolismo. No julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 779, por unanimidade, a Corte decidiu pela inconstitucionalidade da chamada “legítima defesa da honra”. A tese vil, machista e retrógrada buscava a absolvição ou diminuição de pena do homem acusado pela prática de feminicídio ou violência contra a mulher, sob argumento de que a conduta foi motivada pela traição ou conduta desonesta desta mulher. Amplamente utilizada nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, o debate sobre a pertinência da tese entra na agenda pública quando acatada pelos jurados para absolver o empresário Doca Street pelo assassinato de Ângela Diniz. A “honestidade” da vítima, morta com tiros no rosto, em 1976, foi exaustivamente questionada pelos advogados da defesa a fim de convencer os jurados de que a absolvição era justa, visto que o acusado teve sua honra gravemente ferida. Fortemente influenciado pelo movimento feminista “Quem Ama Não Mata”, Doca Street foi submetido a novo julgamento e, desta vez, condenado.
A construção jurídica, que historicamente permitiu que o bem jurídico “honra” do homem se sobrepusesse ao bem jurídico “vida” da mulher, foi forjada por um sistema social e jurídico que buscava manter a violência doméstica contra a mulher distante da esfera pública, sob o argumento de que a privacidade da vida familiar seria inviolável. Soma-se a esse, o fato de que o sistema jurídico tradicional reforçou a dominação masculina não somente ao considerar as mulheres incapazes para atos da vida civil, como também ao categorizá-las a partir de sua conduta social. A resistência da legislação penal em suprimir expressões como “virgem” e “honesta” dos crimes sexuais evidencia o poder da tradição machista em nossa sociedade.
Como exemplo, foi somente a Lei 11.106 de 2015, que após 27 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, sepultou de forma definitiva a expressão “mulher honesta” do Código Penal, ao retirá-la do crime de posse sexual mediante fraude. Importante destacar que, marco da transição democrática e da institucionalização dos direitos civis e políticos das mulheres no Brasil, a Constituição Cidadã não somente reconheceu a igualdade de gênero com uma cláusula pétrea (artigo 5º, I) como trouxe o embrião da rede de proteção à violência contra a mulher no Brasil (artigo 226, §8º).
De lá para cá, a luta pelo fim da violência contra a mulher, em todas as suas formas, tem sido uma necessidade constante. É uma luta contra a invisibilidade, contra a naturalização do machismo, contra a banalização das agressões e contra a morosidade e leniência do sistema de justiça criminal. Símbolo dessa luta no Brasil é a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes. Após sofrer duas tentativas de feminicídio pelo marido, a vítima, que ficou tetraplégica, teve que recorrer à Organização dos Estados Americanos para ter o direito de que seu caso fosse julgado no Brasil. Em consequência, foi promulgada em 7 de agosto de 2006, a Lei nº 11.340, considerada a terceira melhor legislação do mundo no combate e prevenção à violência doméstica e familiar contra a mulher.
Em 17 anos de existência, o avanço legal e democrático trazido pela lei Maria da Penha é inegável. No entanto, as políticas de prevenção à violência contra a mulher encontram o desafio de se consolidarem em uma sociedade onde ainda é necessária a intervenção do Poder Judiciário para afirmar o óbvio: “Quem ama não mata!”.