Três dias depois do rompimento da Barragem 1, em Brumadinho, Anderson Passos, tenente-coronel do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, recebeu um telefonema que o deixou, literalmente, de “garganta seca”. Ele é de Uberaba e estava de férias com a família, em Belo Horizonte, quando fora chamado para comandar as equipes de resgate das vítimas do que foi considerado o maior desastre ambiental e humano provocado por uma mineradora aqui no Brasil. “A primeira imagem que me marcou, logo na chegada, foi a percepção de toda uma comunidade enlutada, perplexa, como se uma nuvem de tristeza tapasse o sol. O terreno revirado feito um campo de guerra. Um cenário entristecedor e implacavelmente desafiador.”
Passos passou por Juiz de Fora, em evento organizado pela Editora Paratexto, para apresentar o livro-reportagem “Brumadinho 272” (11 Letras, 320 páginas), lançado por ele e por Luciana Quierati, jornalista que chegou à localidade dois dias depois do rompimento da barragem da Vale e que fez ampla cobertura dos fatos para o portal Uol. “O livro faz o inédito registro dos olhares de quem participou diretamente das buscas. O leitor experimentará uma imersão nas humanidades e desumanidades que permearam o desastre, contadas por bombeiros, voluntários, parentes e sobreviventes. Nós achamos que um livro-reportagem seria a melhor forma de sensibilizar a sociedade para o problema das barragens, fazendo um registro histórico mesmo, sabe?”, conta o bombeiro veterano, comentando que a escrita também era necessária para que as histórias, tocantes, não se perdessem no tempo.
De acordo com ele, a “labuta” de correr atrás dos personagens, coletar informações e escrever foi toda compartilhada. Trata-se de um texto construído a quatro mãos, sendo que um foi lapidando a produção do outro. E por que “Brumadinho 272”? “Para a Vale e para vários órgãos públicos, o rompimento da Barragem 1 em Brumadinho, no dia 25 de janeiro de 2019, deixou 270 mortos. A lista de óbitos não incluiu a Maria Elisa, na barriga da Eliane de Oliveira de Melo, e o Lorenzo, no ventre da Fernanda Damian de Almeida. Mas, nesta obra, os dois nascituros são considerados”, explicam os autores.
– Sala de Leitura: Para escreverem o livro, vocês conversaram com familiares das vítimas e sobreviventes. Quais eram e quais ainda são os anseios dessas pessoas?
– Anderson Passos: Os sentimentos de injustiça e indignação por impunidade apareceram em todos os relatos. Percebi que neles também ficou gravada profundamente a estupefação por um desastre nitidamente evitável haver levado a vida dos seus entes queridos e impactado toda uma comunidade.
– E como elas se posicionam em relação à Vale?
– Embora não fosse o foco das entrevistas, isso surgia naturalmente e, muitas vezes, resumido no relato de um sentimento de traição de confiança: a empresa que significava segurança econômica e social, um orgulho geral, foi a protagonista deste terrível desastre humano e ambiental.
– Durante as buscas, as equipes de resgate são expostas a situações de perigo extremo e de muita tensão, como no momento em que receberam a falsa notícia do rompimento da Barragem 6. Como lidar com o medo?
– O medo é necessário em qualquer atividade e ele nos mantém atentos. No caso dos bombeiros, a gestão do risco é trabalhada desde o exame psicotécnico nos concursos de admissão e vai sendo burilada ao longo da carreira, através de cursos, treinamentos e exposição gradual aos ambientes das emergências. O medo não deve nos paralisar. Ele é bem-vindo para nos fazer lembrar da nossa própria fragilidade.
– Em uma determinada situação de perigo, um dos profissionais que atuavam no resgate falou que teria que procurar um psicólogo quando saísse de lá. De que maneira você lida com as lembranças dessa tragédia? E onde encontrou superação?
– Eu também busquei atendimento psicológico. A gente aprende, ainda na infância profissional, que a exposição aguda à interação com pessoas em sofrimento emocional nos afeta mais do que possamos perceber de imediato. A carga física da atividade vai se somando à carga emocional e espiritual, e o resultado é um desgaste ou um surto repentino. Então é fundamental ficar atento a si mesmo e aos colegas que possam não estar vendo os sinais e sintomas. Isso pode comprometer seriamente qualquer atendimento de ocorrência, em especial as de longa duração.
– Naquela situação, vocês lidavam com pessoas que ficavam lá, angustiadas, à espera de notícias, pessoas que haviam perdido familiares e amigos. Conte-nos como era ser portador de notícias tão tristes e o que essa experiência trouxe de aprendizado.
– Um desafio inominável. Ao longo da missão, os números frios foram ganhando nome, sobrenome, foto e história. Em pouco tempo, estávamos buscando por 272 amigos que nunca chegamos a conhecer pessoalmente. Então, era uma dor nossa também. Isso nos motivava e humanizava bastante, mas corroía o nosso coração nos vários revezes que a operação nos impingia regularmente. A primeira reunião com os familiares foi, certamente, o dia mais difícil que vivi.
– “A mancha que pintou tudo da cor de lama também deu uma demão de tristeza em todos. Mudou a vida de muita gente”, diz um trecho de “Brumadinho 272”. O que mudou na vida dos dois autores dessa obra?
– Nisso há um triste consenso. Presenciando e relatando as dores alheias, pudemos avaliar as nossas próprias, e isso reforça o sentimento de que a vida é um sopro divino que carece de ser inspirado com resignação e gratidão. Nas entrelinhas, buscamos acolher cada familiar, homenagear a memória das vítimas através do registro do esforço de muitos anônimos feito em prol de cada uma delas. Os impactos do desastre ecoam muito além das montanhas de Minas, mostrando que conhecimento sem amor é arma perigosa. Escrever o livro foi também uma expiação com os desastres anteriores, cujo grito a sociedade não ouviu a contento e permitiu que Brumadinho 272 se tornasse necessário, ainda que para mostrar que a Humanidade é ainda maior que as tragédias que produz.