JoĆ£ozinho vai votar

Por Nara Vidal

O brasileiro Ć© simpĆ”tico, generoso, adora uma caridade. Eu ouvia muito isso nas primeiras dĆ©cadas da minha vida. Cheguei a achar que fosse verdade. AtĆ© eu conhecer o JoĆ£ozinho, menino criado para valorizar a famĆ­lia e Deus, como qualquer pessoa de bem. JoĆ£ozinho vai crescer com medo do escuro, de Exu, de macumba, candomblĆ©, pai e mĆ£e de santo, mas sem medo da fome, esse fantasma agarrado ao pĆ© da cama que JoĆ£ozinho divide com mais dois irmĆ£os.
JoĆ£ozinho, menino de sorte, conhece uma famĆ­lia generosa. A mĆ£e dele trabalha na casa dessa famĆ­lia. SĆ³ podem ser abastados porque pagam, vejam, duas vezes pela mesma coisa. Se a escola pĆŗblica nĆ£o Ć© boa o suficiente, a famĆ­lia rica nĆ£o vai reivindicar e reclamar e se envolver para melhorar a qualidade daquilo que Ć© dever do governo proporcionar. NĆ£o. Ela vai mostrar o cartĆ£o de crĆ©dito, fazer dĆ­vidas, acumular boletos, mas os filhos estudam em colĆ©gio de rico. Assim, esse tipo de cidadĆ£o acredita proporcionar Ć  famĆ­lia uma espĆ©cie de escalada social. Esse tipo dĆ” emprego pra mĆ£e do JoĆ£ozinho. Mas, um dia, JoĆ£ozinho vai ter um futuro melhor; vai frequentar lugar de rico e se dar com ricos que vĆ£o sempre rir do JoĆ£ozinho, porque JoĆ£ozinho nunca vai conseguir acompanhar as viagens ao exterior e Ć s praias. Quando crianƧa, JoĆ£ozinho nĆ£o vai ter criados porque jĆ” Ć© criada a sua mĆ£e. E a sua mĆ£e nĆ£o tem a carteira assinada, jĆ” que ela acredita que seja sinal dos tempos o sinal de desrespeito e retrocesso nos seus direitos. Quando a famĆ­lia do JoĆ£ozinho adoece, eles nĆ£o querem ir ao SUS porque merecem mais – o patrĆ£o da mĆ£e mesmo jĆ” disse! Merecem um tratamento particular. Onde jĆ” se viu ter que entrar na fila, esperar como todo mundo para ser atendido? NĆ£o. JoĆ£ozinho e sua famĆ­lia sĆ£o especiais por merecimento, mas nĆ£o conseguem ser tratados como vips. A famĆ­lia para a qual a mĆ£e do JoĆ£ozinho trabalha tem um problema diferente: ninguĆ©m consegue, por mais que tente, dobrar lenĆ§Ć³is. JĆ” tentaram, coitados, entre eles e nunca estĆ” bom, sempre torto, sempre inferior Ć  dobra que sabe fazer a mĆ£e do JoĆ£ozinho.
E para nĆ£o fazerem um trabalho malfeito, deixam com quem sabe fazer com excelĆŖncia. Em retorno, um muito obrigado mesmo de coraĆ§Ć£o, permeado por um sorriso branco com todos os dentes pagos em vinte prestaƧƵes. E nĆ£o Ć© sĆ³: a mĆ£e do JoĆ£ozinho que faz cama como ninguĆ©m ganha as comidas que a outra famĆ­lia nĆ£o aguenta comer, as roupas que jĆ” sĆ£o velhas, mas de marca, uma cesta linda de Natal que tem atĆ© vinho. Brasileiro Ć© generoso, nĆ£o hĆ” como contestar. Enquanto tudo isso acontece, com sorte, JoĆ£ozinho estĆ” na escola. NĆ£o a mesma da, praticamente, segunda famĆ­lia, mas outra, a pĆŗblica onde JoĆ£ozinho come biscoito e mingau quando era pra comer arroz, feijĆ£o e salada. Com sacrifĆ­cio vai falar inglĆŖs e vai ser patrĆ£o. Ainda que nĆ£o chegue a ser mesmo patrĆ£o porque o inglĆŖs dos meninos ricos Ć© praticado com viagens, cursos nos Estados Unidos, na Inglaterra, atĆ© na AustrĆ”lia os ricos conseguem chegar.
E JoĆ£ozinho cresce com uma raiva danada. JoĆ£ozinho quer ser premium, quer ser especial como nĆ£o foi, quer excluir e quer ser incluĆ­do. Vai trabalhar numa empresa e vai chegar a gerente porque tem ambiĆ§Ć£o. JoĆ£ozinho vai se casar, fazer dĆ­vida para uma festa onde nĆ£o pode fazer feio e vai receber aquelas pessoas caridosas do seu passado. O ex-patrĆ£o da sua mĆ£e vai dar ao JoĆ£ozinho e Ć  noiva uma geladeira que JoĆ£ozinho vai custar a encher. Os filhos do ex-patrĆ£o vĆ£o dar aos noivos, a quem chamam amigos, um espelho mĆ”gico, chamado TV de oitenta polegadas. Quando os filhos nascerem, JoĆ£ozinho nĆ£o vai ficar satisfeito com a ideia de uma escola pĆŗblica, um serviƧo Ćŗnico de saĆŗde, com uma bicicleta para chegar ao trabalho. JoĆ£ozinho vai querer mais Ć© um carrĆ£o pra colocar uma gasolina dentro dele que custe o fĆ­gado e o churrasco de domingo, onde aprendeu direitinho a falar mal da Venezuela, das bichas e dos pretos da cidade. JoĆ£ozinho tambĆ©m Ć© preto, mas preto clarinho porque tem portuguĆŖs na famĆ­lia; portuguĆŖs, esse povo tĆ£o sem mestiƧagem! O filho do JoĆ£ozinho vai aprender a ser homem macho como ele sempre foi. A filhinha do JoĆ£ozinho vai ser uma princesa. E JoĆ£ozinho vai se recusar a comprar comida dos produtores locais porque JoĆ£ozinho vai ter carro pra ir ao supermercado que vende atĆ© brinquedo, joias e perfume. JoĆ£ozinho vai ser chic como sempre mereceu. JoĆ£ozinho vai virar um cidadĆ£o do bem que nĆ£o tem tempo pra ver o seu entorno, que nĆ£o vai aceitar migalhas do governo, que vai ter ambiĆ§Ć£o e uma empregada a quem trata como se fosse da famĆ­lia, que vai comprar um apartamento com varanda gourmet, brinquedoteca pros filhotes para quem ele se mata de tanto trabalhar para pagar escola e plano de saĆŗde duas vezes como bem aprendeu com a classe mĆ©dia. JoĆ£ozinho se mata de sacrifĆ­cio tentando ser rico. Mas antes de morrer, JoĆ£ozinho vai votar pra presidente.

Nara Vidal

Nara Vidal

Nara Vidal Ć© escritora. Nascida em Guarani, Zona da Mata mineira, em 1974, hĆ” quase duas dĆ©cadas vive em Londres. Ɖ autora de mais de uma dezena de tĆ­tulos, a maioria deles publicados em portuguĆŖs. Dentre eles, os infanto-juvenis "Dagoberto" (Rona Editora) e "Pindorama de Sucupira" (Penninha EdiƧƵes), os de contos "Lugar comum" (Passavento) e "A loucura dos outros" (ReformatĆ³rio), e o romance "Sorte" (Moinhos), premiado com o terceiro lugar no Oceanos de 2019.

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