Aprender com diversão: o papel da gamificação no ensino
O uso de jogos na educação pode despertar o interesse dos jovens pelo estudo e motivar sua participação
Muito antes da existência do mundo virtual, as brincadeiras com jogos já estavam inseridas na nossa cultura e foram repassadas por gerações. Com o avanço da tecnologia em nossa rotina, principalmente durante a pandemia de Covid-19, os jogos eletrônicos se tornaram um hábito comum em uma cultura cada vez mais visual e interativa. Para além da diversão que essa prática, consumida de forma moderada, proporciona, unir o lúdico ao aprendizado pode ser uma alternativa para estimular estudantes em diferentes fases do ensino. A Tribuna conversou com especialistas que destacaram a importância dos games, seja de maneira on-line ou off-line, na educação.
Para a coordenadora do curso de Licenciatura em Artes Visuais do Instituto de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Letícia Perani, todas as atividades humanas são de alguma forma lúdica. Letícia começou a estudar games e cibercultura ainda na graduação em Comunicação na UFJF e seguiu com os desdobramentos do tema até o doutorado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). “Quando a gente estuda as raízes do termo lúdico, percebemos que muitos processos da cultura da sociedade humana já são lúdicos por natureza. A partir do jogo, nós fomos desenvolvendo as nossas formas de sociabilidade humana, como rituais, religiões e atividades culturais.”
De acordo com Letícia, quando os professores utilizam as características dos jogos na didática, o nível de participação é maior, já que exige interação e engajamento do aluno no próprio processo de educação, pois os jogos são atividades que dependem da ação do participante para poder acontecer. “No momento em que colocamos o jogo no meio do conteúdo escolar, estamos permitindo que os alunos interajam com esses conteúdos de forma mais ativa, ou seja, não é aquela sala de aula tradicional, em que o professor responde ali o conteúdo e o aluno só absorve. Na verdade, o aluno está fazendo parte do processo. Mas também estamos colocando diversão no ensinar, né? Estamos mostrando que o aprender pode ser divertido.”
Os jogos no saber
Em 2018 e 2019, a professora elaborou uma atividade com alunos de escolas públicas do município para ensinar a história do lúdico aos jovens, contextualizando o grande interesse deles nos jogos eletrônicos. Letícia propôs aos alunos a criação de um personagem de um game idealizado por eles. A partir dos desenhos dos estudantes, os universitários do Instituto de Artes e Design redesenhavam de forma profissional os personagens e a professora retornava à escola para entregar o desenho pronto aos alunos. “Era curioso como falar justamente deste histórico do lúdico e da importância do jogar para a nossa vida mudava a percepção dos alunos do que é o game, para além do jogo eletrônico, que eles tão acostumados no dia a dia”, aponta Letícia.
A iniciativa faz parte do projeto de extensão da universidade “A ciência que fazemos”, que tem o objetivo de aproximar cientistas e estudantes da formação de base. As atividades foram voltadas para alunos do ensino fundamental II até o ensino médio. A professora conta que, pelo fato de os jogos já fazerem parte da cultura jovem, os alunos demonstravam muito domínio do assunto, conversavam sobre o que eram jogos, de que forma a interação social acontece através deste instrumento, e eram poucos os alunos que realmente não se interessavam. “Quando a gente retornava com os desenhos dos alunos prontos despertava ainda mais interesse. Era como se aquele pedaço de imaginação que eles tinham pudesse se tornar realidade.”
Os caminhos da gamificação no ensino
Gamificação. De uns anos pra cá, esse termo ficou mais conhecido, já que muitas empresas começaram a implantar essa técnica para melhorar o rendimento, além de ter se tornado mais comum em temas ligados a marketing e, claro, nas salas de aula. Mas, afinal, o que é gamificação?
De acordo com as especialistas entrevistadas nesta reportagem, o conceito se refere ao ato de inserir modos lúdicos em atividades que normalmente não são jogos, ou seja, trazer as características dos jogos para outras tarefas. Essa técnica não está, necessariamente, ligada à tecnologia, pois é possível gamificar até mesmo a rotina de trabalho, colocando níveis de dificuldades nas tarefas e recompensas, por exemplo.
A gamificação pode ser usada na educação como uma forma de motivar o aprendizado, como aponta a professora da Faculdade de Comunicação da UFJF Janaína Nunes. “Se por um lado você gera uma certa competitividade, por outro você gera uma motivação.” Janaína pesquisa como os jogos digitais podem gerar aprendizagem e acredita que um meio para não estimular a competitividade, que às vezes pode ser negativa e impede o ensino do diálogo e da colaboratividade, é personalizando os níveis de dificuldades e recompensas conforme as necessidades de cada aluno.
“Não em uma competição coletiva entre alunos, quem fez primeiro, quem ganhou primeiro, mas sim sobre ‘como eu consegui vencer essa dificuldade que eu tenho’, de forma individual.” E, por isso, a pesquisadora reforça a importância da mediação do professor.
No seu estudo, Janaína trabalha com a ideia de que ao consumir um conteúdo feito por meio da combinação de diferentes formatos, como a leitura, imagem, som e vídeo, de forma simultânea, maior é a absorção do conhecimento. “Quando você leva isso para o campo da educação, você facilita muito a compreensão do aluno, porque ele vai poder visualizar aquelas informações que são de conhecimentos científico relacionadas a diversas áreas, tanto nas exatas, quanto nas humanas.”
De acordo com a professora, um conteúdo, por exemplo, sobre a Segunda Guerra Mundial voltado para alunos de 10 anos, pode ser dado por meio de livros, documentários e jogos sobre o tema. “O aluno vai aprender por meio da experiência, não só por meio de algo que te contaram. Então, dificilmente ele vai esquecer o conteúdo, porque ele vivenciou aquela situação.”
Entretelas: do digital ao presencial
Um desafio para a educação pública é o acesso a tecnologias que permitam a inserção dos jogos eletrônicos na didática, como smartphones, computadores e internet, além da capacitação dos profissionais para lidarem com a temática. A coordenadora do curso de Licenciatura em Artes Visuais do Instituto de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Letícia Perani, conta que essa questão ficou muito evidente quando participou do projeto “A Ciência que Fazemos”. Ela conta que algumas escolas públicas eram mais equipadas do que outras, o que levou a adaptação da forma de trabalhar. “Mas a gente sempre conversava com os alunos que as características dos jogos são interessantes não só na sua forma digital, mas também da forma tradicional. Como jogos de cartas, tabuleiro, jogos de interpretação de papéis, que são os RPGs (Role Playing Game). Todos esses jogos que não dependem da tecnologia digital são muito interessantes para serem aplicados em lugares que não tem tanta estrutura de tecnologia digital, pois não deixam de oferecer uma experiência lúdica”, explica Letícia.
Antes da pandemia, Janaína começou a coordenar o projeto de extensão “Entretelas: educação e pandemia”, voltado para escolas públicas com o objetivo de entender como os professores usam mídias e tecnologias na educação. Ao longo do trabalho, a pesquisadora notou que existem iniciativas de formação direcionadas para essa temática do uso das mídias no ensino e professores capacitados para atuar nessa área. O que acontece é que muitas vezes esses profissionais não têm espaço em sala e dependem do direcionamento da coordenação pedagógica da escola e de iniciativas individuais dos educadores. Com a pandemia, muitos professores precisaram se formar para se adaptar ao ensino remoto obrigatório e emergencial. Porém, ao retornar para o modelo presencial, essas tecnologias ainda não foram encaixadas na rotina escolar, apontam os estudos de Janaína.
“A iniciativa do projeto era o uso de nível de tecnologias pelos professores na educação, mas quando realizamos as entrevistas para conversar com os sujeitos outras questões vieram à tona, que são muito mais urgentes. E a gente teve que mudar um pouco o foco da pesquisa para poder acolher o que o campo nos trouxe”, relata a pesquisadora. O pós-pandemia intensificou a sobrecarga dos professores, a dificuldade de sociabilidade dos alunos e a defasagem do aprendizado causada pelo ensino a distância. Por isso, falar do uso de games nesse cenário pode parecer algo muito distante.
No entanto, as especialistas acreditam que tornar as aulas tradicionais mais lúdicas pode ser um caminho para oferecer um conteúdo mais atraente, divertido e conquistar o interesse dos alunos. “Pensar o lúdico na educação é pensar em como fazer com que as nossas salas de aula se adaptem a essa estrutura contemporânea da cultura da interconexão e do digital. Para que a escola ainda faça sentido para jovens”, aponta Letícia e acrescenta Janaína afirmando que os jogos podem gerar motivação nos alunos. “Percebemos, principalmente na escola pública, a desmotivação dos alunos, que às vezes não sabem porque estão ali ou porque estão aprendendo aquilo. Tornar as aulas mais lúdicas geraria uma motivação na aprendizagem.”