Insuportável
Tenho relutado em falar sobre o óbvio e procurado seguir a cotação histórica do silêncio como ouro em contraposição à prata da palavra. Só que cada vez mais, percebo que no Brasil atual a noção de obviedade foi corrompida, adulterada ou, para quem tem fé, profanada.
Seria esperado que a Justiça (tanto a maiúscula institucional quanto a mais universal, minúscula e do senso comum) considerasse absurdamente esdrúxula e violenta sequer a ideia de que uma menina de 11 anos que sofreu violência sexual levasse adiante uma infeliz gravidez decorrente de sua violação. Mas ao contrário, a juíza culpabiliza e pressiona uma menina a arcar com sua própria violência, indagando: “’Suportaria ficar mais um pouquinho?”. Sobre uma gestação que sequer deveria ter existido, quanto mais “ficar”, o tempo que seja.
O aborto, palavra moralizada e excomungada pela família tradicional brasileira, é permitido pela legislação do país quando a gravidez é decorrente de estupro e quando há risco à vida da gestante, ambas situações em que a criança deste caso se enquadra. Doa a quem doer, o corpo desta menina é laico e não existe para garantir a felicidade de qualquer “casal” que possa encontrar “felicidade” em um bebê, como também argumentou a juíza do caso.
Corpos femininos não são incubadoras e, acima de tudo, como muito foi dito nas redes sociais, “criança não é mãe” e “estuprador não é pai”. Para começar, estupro não é sexo, é violência. É inconcebível (literalmente).
E é inadmissível que um aborto, sobretudo nestas condições (mas não somente nelas) escandalize mais que uma criança tomada a força, estuprada. É intolerável a ideia de viver num país em que meninas são (mal) tratadas assim desde tão cedo, e desta forma seguem condenadas por uma vida toda. Só depois de ser repetidamente julgada, violentada e exposta pelo sistema e pela opinião pública, a menina, enfim, conseguiu realizar o aborto que sempre lhe fora de direito.
A falta de obviedade do Brasil, por só “mais um pouquinho” que seja, é absolutamente insuportável.