O dia 1º de janeiro de 2022 demarcou os 80 anos da entrada em vigor do Código de Processo Penal – ou CPP, para os de casa. Para além dos clichês, marcos temporais como esse podem ser bons convites à reflexão, oportunidades interessantes para se (re)pensar o passado, se assimilar o presente e se mirar o futuro.
Numa (arriscada) formulação vulgar, o Código de Processo Penal é a norma que se encarrega das formas (e garantias correlatas) a serem seguidas desde a instauração de uma investigação criminal até a execução de uma pena criminal. Por conseguinte, o processo se apresenta como verdadeira nota distintiva da racionalidade no fenômeno punitivo: se o castigo é tão longevo quanto a própria coletividade humana – eis que resulta de sua própria vocação reativa, o que realmente nos permite reivindicar um lugar na civilização é justamente o fato de existir um processo que anteceda (e condicione) a pena, assegurando ao sujeito passivo não ser pura e simplesmente vingado ou barbarizado.
Recusar a existência de um processo (ou seja, de suas formas e garantias), portanto, é ressuscitar a conexão direta entre crime e castigo, ‘sem burocracia’, mantendo-se no máximo alguma encenação litúrgica, na mais perfeita exibição do que se pode chamar de barbárie. E espanta quantos assim desejam nos dias atuais! Como cantava Gessinger, ‘Você, que tem ideias tão modernas, é o mesmo homem que vivia nas cavernas.’
Entretanto, nosso vetusto CPP não nasceu exatamente marcado por essa missão civilizatória. Editado no auge do Estado Novo (regime ditatorial liderado por Getúlio Vargas entre 1937 e 1946), o Código resultou de um esforço capitaneado por Francisco Campos, um dos mais respeitados intelectuais da primeira metade do Século XX (sendo, por isso, apelidado de “Chico Ciência”). A erudição político-jurídica de Francisco Campos, todavia, arejava-se em ventos teóricos que sopravam de uma Europa em boa medida encantada pelo nazifascismo, fazendo dele próprio um intelectual orgânico do autoritarismo.
Em sua obra O Estado Nacional, por exemplo, publicado apenas dois anos antes da entrada em vigor do CPP, se lê: “Na Alemanha, enquanto um parlamento em que já houve o maior número de partidos procurava inutilmente chegar a uma decisão política mediante os métodos discursivos da liberal-democracia, Hitler organizava nas ruas, ou fora dos quadros do governo, pelos processos realistas e técnicos, por meio dos quais se subtrai da nebulosa mental das massas uma fria, dura e lúcida substância política, o controle do poder e da nação” (Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001).
Do criador às criaturas: Campos foi o mentor da Constituição de 1937 (marcadamente autoritária, o que lhe rendeu o apelido de ‘polaca’, por ter sido inspirada no modelo semifascista polonês) e o inventor da figura do Ato Institucional como principal instrumento normativo da ditadura militar. Não à toa, já alertava o cronista Rubem Braga: “Toda vez que o Sr. Francisco Campos acende sua luz, há um curto-circuito nas instalações democráticas brasileiras”.
Importa assimilar, portanto, que nosso octogenário CPP, inspirado no ‘Codice Rocco’ da Itália fascista dos anos 1930, foi justamente uma dessas criaturas de Chico Ciência. Por isso mesmo, trata-se de um Código de matriz política (autoritária) e jurídica (inquisitória) que se opõe de forma diametral ao regime democrático edificado no Brasil após a Constituição de 1988.
Naturalmente, nesse percurso de oito décadas, centenas de reformas legislativas pontuais foram operadas no Código, sendo que parte delas buscou remover-lhe formas inquisitórias, clandestinas em tempos de democracia. Entretanto, o acúmulo de alterações pontuais e localizadas conferiram ao CPP a textura de ‘colcha de retalhos’, em que a falta de organicidade e sistematicidade o faz disfuncional, ineficaz, desarmônico e muitas vezes imprestável mesmo.
Mais de 30 anos após a edição de nossa Constituição Cidadã, urge que apaguemos de vez as “luzes de Francisco Campos”, cujo reflexo projeta a sombra de um passado insepulto. Das sombras às (novas) luzes, que seja concluída a tramitação do Projeto de Lei 8.045/10 na Câmara dos Deputados para que o novo Código de Processo Penal possa ultimar, enfim, o rito de passagem para a transição democrática – ainda inconcluso, ao menos no campo processual penal.