Personagens tradicionais, bruxas mudam perfil através dos anos
No Dia das Bruxas, pesquisadores e entusiastas avaliam a transformação no perfil da personagem na literatura e no cinema ao longo dos anos

As bruxas estão em todo lugar. Atravessaram o tempo, transformaram narrativas, ora vistas como más, ora como boas, mas sempre permanecendo no imaginário popular de diferentes culturas. No cinema, clássicos ganham novas versões, e na literatura brasileira novas abordagens as colocam como protagonistas. Quando o conceito de bruxa surgiu ninguém sabe exatamente, mas que elas estão presentes em mitologias e lendas de diversas culturas, é fato. Desde Circe, da “Odisseia” de Homero, feiticeira mais famosa da mitologia grega, ao trio de bruxas da peça “Macbeth”, de Shakespeare, que se tornou uma representação comum na ficção, até a famosa série de fantasia Harry Potter.
Na literatura brasileira, o professor de redação e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora Waldyr Imbroisi constatou que a imagem da bruxa europeia nunca esteve presente, justamente por não ter ocorrido a imposição dessa perspectiva no imaginário nacional. Em sua pesquisa sobre a representação das bruxas na literatura brasileira do entresséculos (XIX – XX), ele notou que as bruxas nacionais são menos ligadas às artes das trevas e mais às mulheres sábias, idosas que possuíam saberes sobre o corpo e o espírito, que conduziam partos e abortos e conheciam a dosagem certa que diferencia o remédio e o veneno. E isso se deu em razão de “a colonização ter sido depois que a Inquisição já enfraquecia no Velho Mundo, e sua atuação foi muito frágil no Brasil”.

“É o caso, por exemplo, de Paula – personagem do livro ‘O Cortiço’, de Aluísio de Azevedo -, chamada pelos outros moradores do cortiço de João Romão de “bruxa” e procurada por razões diversas que envolvem a sabedoria tradicional feminina. Assim, a bruxa da literatura brasileira é mais próxima da visão popular dessa entidade do que das formulações eruditas dos eclesiásticos”, destaca Waldyr.
Segundo a escritora Carol Chiovatto, autora do livro “Porém bruxa”, em um primeiro momento houve a tendência narrativa de implementar as notícias sobre casos “reais” de bruxaria. “Aos poucos, no entanto, conforme se questionava a injustiça da condenação de bruxas à morte e se pensava no destino e na dureza da vida dessas mulheres, a literatura começou a entendê-las como vítimas de uma sociedade incompreensiva, o que deu início à forma como algumas obras atuais, geralmente de viés mais feminista, as colocam no papel de protagonista/heroína (ou anti-heroína)”, explica.
‘Porém bruxa’
Uma bruxa que trabalha monitorando crimes envolvendo forças sobrenaturais em São Paulo, com uma única condição: se não houver nenhuma magia envolvida, ela não pode intervir. Esta é a premissa que guia o livro de Carol Chiovatto. A protagonista Ísis Rossetti foi criada com o propósito de dar voz, realmente, a uma bruxa. Isso porque, ao longo das pesquisas acadêmicas feitas por Carol, doutoranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na Universidade de São Paulo, acerca dos temas bruxas, estereótipos de gênero e semiótica, ela notou o quanto a figura da bruxa pertencia sempre ao narrador.
“Ela não falava de si mesma. Só temos acesso à sua voz filtrada por muitas camadas: um interrogador direcionando-a com perguntas que não costumam ser registradas, um escrevente do processo, que presumidamente a escutou e escreveu suas palavras, o autor de um panfleto de notícia sobre algum caso de bruxaria”, argumenta a autora, refletindo que, mesmo nesses momentos, a personagem nunca era a protagonista da história, não sabíamos o que ela pensava, sentia ou fazia. Acompanhando uma tendência moderna, Carol desejou que a bruxa fosse a narradora e, assim, contasse sua própria história.
Revendo clássicos
Os filmes que rondam o universo da bruxaria sempre despertaram o interesse de Rebeca Telles, estudante de jornalismo e criadora do projeto Tellescopio, que explora o universo da cultura pop. Desde a infância assistia a produções envolvendo bruxas nas tramas, como o clássico “Convenção das bruxas” (1990). Embora a imagem da personagem Evan Ernst, interpretada pela atriz Anjelica Huston, se transformando em bruxa tenha traumatizado – “um pouco” – Rebeca, ela se divertia e gostava daquela presença imponente.

“Como uma boa fã de filmes de terror e de fantasia, a figura da bruxa sempre me despertou certa curiosidade e até mais identificação, porque elas tinham algo que as mocinhas e princesas não tinham, e hoje eu acredito que seja um empoderamento, não ter medo de mostrar o seu poder e não querer ser dominada”, diz Rebeca.
Assim como em “Convenção das bruxas”, a produção infantil da Disney “Abracadabra” (1993) provoca uma simpatia pelas bruxas, mesmo essas sendo antagônicas. Para Carol, o alívio cômico das três irmãs faz com que o telespectador as adore, mesmo torcendo pelos heróis. “Ali, os estereótipos estão todos bem concatenados, e a gente não pensa que cada elemento veio de uma cultura e se empilhou um sobre o outro ao longo de séculos para formar aquela cena das três em sua velha casa”, ela reflete.
O filme que mudou a percepção de Rebeca sobre essas personagens foi “A bruxa” (2015), estrelado por Anya Taylor-Joy, justamente pela obra ter uma nova representação desta figura, se distanciando dos estigmas tradicionais. “Ele reflete sobre esse imaginário coletivo em torno da bruxa e como isso é um problema estrutural com o foco de podar as mulheres, vilanizando as mulheres que desejam ser livres.”
Para além da história

Historicamente as bruxas foram denominadas como perversas, com características ligadas às trevas e ao mal. Tal estereótipo tem relação com o tratamento dessa figura na vida real, principalmente a partir da caça às bruxas durante o período da Inquisição, na Idade Média. Porém, ao longo do século XVIII, o questionamento a respeito da existência de pessoas capazes de manipular magia ganhou força e “quando a crença caiu por terra entre as camadas letradas da população, as responsáveis pelos tribunais, por exemplo, espalhou-se a percepção desconfortável de que dezenas de milhares de mulheres e homens haviam sido condenados por um crime imaginário”, pontua Carol Chiovatto.
Nesse contexto, houve uma mudança no perfil da bruxa, ela passou a ser considerada uma sábia à frente de seu tempo, mas que continua convivendo com a dualidade entre a bruxa aterrorizante e a bruxa dotada de sabedoria, resquícios desse conflito de crenças dominantes do passado.
Conforme a explicação de Carol, existem dois principais estereótipos na figura da bruxa. O mais tradicional é quando são representadas como feias, mal-humoradas e velhas, na qual o “feio” é associado ao “mal”, a personificação que se afasta de um padrão de beleza idealizado é mostrado como sinal da corrupção interior, e a velhice, especialmente feminina, era indesejável.
Outra representação conhecida é a imagem da bruxa femme fatale, ou seja, jovem e voluptuosa com um poder sexual que levaria à perdição. “Os estereótipos surgem por um motivo, e perduram pelo mesmo motivo, que é sua utilidade, mas aqui a gente os viu transformados em preconceitos”, afirma Carol.