Aceleração: assistir a tudo pensando em nada

Ferramentas que aceleram produtos audiovisuais e sonoros levantam discussão sobre a forma como estamos absorvendo (ou não) aquilo que vemos e ouvimos


Por Cecília Itaborahy, estagiária sob supervisão de Wendell Guiducci

24/10/2021 às 07h00

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Acelerar filmes e séries é recurso disponibilizado recentemente por plataformas de streaming como a Netflix (Foto: Fernando Priamo)

Podia-se dizer que tudo é simplesmente o reflexo da pandemia e que as pessoas estão consumindo mais conteúdo na internet, desde as redes sociais aos produtos audiovisuais, devido ao fato de passarem mais tempo em casa. O TikTok, sim, de acordo com dados da SensorTower, foi o aplicativo mais baixado durante esse tempo. Mas outras “modas” encontraram no momento o sentido de estar. Um exemplo disso é a ferramenta de acelerar esses conteúdos, chamada de “speed watching”. Já antes inserida nos vídeos do YouTube, a técnica foi mais recentemente absorvida por plataformas como Netflix e Spotify. Ela permite, simplesmente, acelerar o andamento de filmes, séries e áudios – inclusive no WhatsApp.

Caio Silva, 22 anos, Helber Lima, 22, e Ana Carolina Ribeiro, 26, são apenas alguns dos que utilizam a ferramenta. Apesar de divergirem quanto ao tipo de conteúdo, uma coisa é fato: todos eles assistem sobretudo produtos audiovisuais acelerados, porque alegam querer aproveitar ao máximo o tempo que têm. Helber e Caio, por exemplo, contaram que têm menos disponibilidade do que queriam para o entretenimento. Quando têm, querem assistir a tudo o que têm direito. Ana Carolina já assume que só faz isso quando se depara com cenas “sem sentido” ou lentas, que não agradam por algum motivo. Outra desculpa é recorrente: “Acredito que tem muito a ver com a ansiedade também. Às vezes acelero uma coisa por pura ansiedade de saber o que vai acontecer”, diz ela. Helber e Caio apresentam o mesmo sentimento.

“Mas, no geral, uso a velocidade acelerada para absorver mais conteúdo que seja interessante para mim”, comenta Helber. Parece existir uma sensação generalizada de querer dar conta de tudo. Os conteúdos não param de sair, cada vez mais interessantes. As mensagens dos grupos não param de chegar. Ao mesmo tempo, o assunto nas redes sociais são exatamente sobre esses conteúdos. Gabriela Borges é professora associada da UFJF e coordenadora do Observatório da Qualidade no Audiovisual. Ela acredita que, de certa forma, essa ferramenta de acelerar acabou facilitando e diminuindo esse sentimento. “Ela facilita a gente assistir mais coisas em menos tempo. A gente não vai estar por fora e vai estar ligado em tudo o que está sendo produzido.” No entanto, mesmo com essa facilidade, existe, sim, uma dificuldade que acaba surgindo.

É o tempo que conta história

“Obviamente, quando isso acontece, a pessoa não consegue assimilar todo o conteúdo que está sendo disponibilizado, então é um tipo de experiência que esse espectador ou ouvinte tem, mas não é a experiência que dá tempo para reflexão”, adverte Gabriela. Os próprios entrevistados contaram que não é todo conteúdo que dá para assistir duas vezes mais rápido. A professora lembra que o tempo é o que constrói a narrativa. Ele é essencial para entender o que está acontecendo e inclusive ditar sensações. “A construção do tempo está na base da contação de história.” Quando o conteúdo é assimilado de outra forma, a percepção muda. E muda tanto que Caio, Helber e Ana Carolina relatam que, depois de muito tempo assistindo a coisas aceleradas, os conteúdos em velocidade normal acabam gerando estranhamento. “Por que essa pessoa está falando tão devagar quando ela poderia estar ensinando isso de uma forma mais rápida, ou falando mais rápido?”, exemplifica Caio.

Mas isso diz muito sobre os hábitos de consumo de bens culturais na sociedade contemporânea. Sobre isso, Gabriela pergunta: “O que é que importa? O que importa é ter acesso ao máximo de conteúdos possíveis, e não refletir sobre esses conteúdos, e não fruir – no sentido de que você toma um tempo para assimilar e para desfrutar no fundo daquelas imagens a fim de poder refletir sobre aquilo?”. Mesmo antes da ferramenta de acelerar, outras técnicas já eram utilizadas com o mesmo efeito, como é o caso de, já nos videocassetes, adiantar cenas para saber o final. Com o tempo, tudo isso só foi intensificado, mas os sinais estavam ali. E sinais psicológicos já são identificados, como argumenta Carlos Eduardo de Souza Pereira, professor e doutor em psicologia: “Aumenta a sobrecarga mental e a frustração decorrente da constatação de que falhamos e falharemos sempre que tentarmos atingir esse objetivo. Novas demandas surgem a cada minuto em nossas vidas e precisamos aprender a organizar o tempo de forma a não nos sentirmos sobrecarregados o tempo todo”.

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Na Netflix, é possível deixar filmes e séries até 1,5 vezes mais rápidos (Foto: Fernando Priamo)

Conteúdos cada vez menores

A própria produção audiovisual vem mudando por causa disso. Gabriela apresenta uma pesquisa que mostra “que os planos nos filmes de língua inglesa que demoravam 12 segundos em 1930 e passaram a demorar 2 segundos e meio em 2014. Quer dizer, a gente vê que há essa compressão do tempo no próprio modo de se produzir imagens”. Hoje em dia, o resultado é mais perceptível ainda. O YouTube abriu as portas para a produção de vídeos menores, que não são nem filmes, nem séries. Recentemente, criou a ferramenta “Shorts”, para vídeos de até 60 segundos. No Facebook, todo mundo posta tudo, e os vídeos são cada vez menores. Mesmo com as mudanças do Instagram, admitindo tempos maiores no IGTV, os “stories” têm 15 segundos. O “Reels, também do Instagram, suporta vídeos de até 60 segundos. E, nesse tempo, muita mensagem é passada – inclusive acelerando.

O TikTok parece merecer mais atenção neste momento. O fenômeno da pandemia só permite vídeos menores que 60 segundos e influenciou YouTube e Instagram na criação do “Shorts” e do “Reels”. “Acho que é mais sintomático ainda dessa compressão do tempo, porque são vídeos realmente muito curtos e que trazem uma mensagem muito rápida e curta. Já vai havendo uma mudança no modo de produção”, pontua Gabriela. Uma consequência disso está sendo percebida até nas músicas. Os usuários aprendem simplesmente a parte que tem a dança que é reproduzida no aplicativo. Os produtores musicais focam os esforços nesse pequeno tempo para que ela entre nas paradas de sucesso. Por esse motivo, as canções também estão ficando cada vez mais curtas. O tamanho médio de uma música na parada Billboard Hot 100, por exemplo, de acordo com reportagem do site “Quartz”, caiu de 3 minutos e 50 segundos em 2013 para 3 minutos e 30 segundos em 2018.

Moderação

Depois de colocar no mundo, o criador não tem mais domínio sobre sua obra. A aceleração dos produtos por parte dos espectadores e ouvintes já é uma realidade. Como consequência, as formas de assistir e a própria maneira de produzir vão se tornando diferentes. Mas tudo tem que ter moderação, adverte Carlos Eduardo. “Entretenimento se refere a lazer, descanso, tempo de recuperação e renovação de energias. Isso se torna mais difícil se tentarmos manter o padrão de aceleração em situações cotidianas. Precisamos lembrar que estudos indicam que a exposição prolongada à tela altera os padrões de funcionamento cognitivo e contribuem para a aumentar a sensação de estresse e estafa experienciadas no dia a dia.”

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