Como é grande ser pequeno
No livro Middlemarch, a escritora George Eliot (seu verdadeiro nome era Mary Ann Evans) fala da protagonista, Dorothea, cuja vida teve uma grande dose de sofrimento por uma má escolha ao se casar ainda jovem:
“Certamente não foram idealmente belos estes atos determinantes de sua vida. Foram o resultado mesclado de um impulso jovem e nobre lutando em meio às condições de uma situação social imperfeita, na qual grandes sofrimentos tomarão muitas vezes aparência de erro, e a grande fé, aparência de ilusão. Pois não há criatura cuja vida interior seja tão forte que não seja grandemente determinada pelo que está fora dela. (…) Mas o efeito de sua pessoa nos que a rodeavam foi incalculavelmente difusivo: pois o bem crescente do mundo depende em parte de atos não históricos; e se as coisas não estão tão mal, nem com você nem comigo, como poderiam estar, isto se deve em grande parte ao número dos que fielmente viveram uma vida oculta, e repousam em túmulos não visitados”.
Dorothea, como diz Eliot, viveu numa situação social imperfeita e teve de fazer suas escolhas sob o impulso da juventude (Oscar Wilde teria dito que experiência é o outro nome que damos para os nossos erros). Somos todos um tanto Dorotheas. Por mais que tenhamos uma intensa vida interior, nossa vida é moldada também pelo que vem de fora.
Tomemos o trabalho como exemplo. Quantas pessoas trabalham exatamente na carreira ardentemente desejada? Quantos de nós teve a possibilidade de escolher a posição que ocupa na divisão social do trabalho? Já daí se vê que nossa vida interior muitas vezes não é atendida pelo destino – e muitos acabam por cair, meio de surpresa, em posições diferentes daquela que pretendiam ou sonhavam. Pode ter sido em algo especial ou não. Mas isso não deve ser motivo de prepotência, desespero ou frustração.
Dorothea sofreu, mas acabou achando seu bom caminho – leia o livro e verá – pois, mesmo vivendo o sofrimento de seu casamento mal feito, ela soube esperar e seguir em frente. Ao final, seus atos não foram nada históricos, mas o bem do qual desfrutamos, nos diz Eliot, depende em grande parte das pessoas caídas nos túmulos não visitados.
Uma vida pode ser pequena, não reconhecida; a pessoa pode estar presa a um trabalho repetitivo e não desafiador; talvez o “agora” medíocre pareça eterno. Mas de uma vida oculta para o mundo poderá emanar o bem para o próximo. Basta atuar com a dignidade que aquele papel social merece.
Vejamos o exemplo de Tereza de Lisieux, a Santa Terezinha, cuja festa litúrgica se deu no último dia 1º. Nos breves 24 anos que passou na Terra, ela refletiu sobre o que se pode chamar “dilema da pequenez”. Eis o dilema: Tereza quis ser santa desde pequena, mas sempre que se confrontava com os santos, ela via a mesma diferença que há entre a montanha e o chão. Como ser santa se ela estava presa ao convento, de onde nunca saía? Ela não era missionária, não viajava, não estava curando os enfermos… Sua vida era tão pequena e enclausurada que não era factível almejar e conseguir a grandeza. Ela, então, solucionou seu dilema da seguinte forma, segundo ela mesma escreveu: “devo, pois, suportar-me tal qual sou, com todas as minhas imperfeições. Mas procurarei um meio de ir para o céu por uma trilha bem reta, bem curta, uma trilha inteiramente nova”. E qual foi essa trilha? Aplicar-se “à prática de pequenas virtudes, uma vez que não achava facilidade de praticar as grandes”.
O que Dorothea (personagem fictícia) e Santa Terezinha (personagem real) nos ensinam é que ambas tiveram vidas pequenas, não históricas, no sentido espetaculoso do termo _ mas a pequenez esconde uma dignidade que merece o maior respeito. Curiosamente, ambas se eternizaram. Ocultas em vida, hoje atraem nossa profunda admiração pela prática do bem e das pequenas virtudes. Ao que parece, nem só de grandeza vive a eternidade.
Carlos Eduardo Paletta Guedes