Lei de Segurança Nacional: cadáver adiado, passado que não passa
Numa curiosa sincronia, enquanto a eleição presidencial brasileira de 2018 abria caminho para uma amarga distopia (e, como dizia Millôr Fernandes, um longo passado nos aguardava pela frente), Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Ciência Política na Universidade de Harvard, brindavam o mercado literário com a obra “Como as Democracias Morrem” (Zahar Editores). Trata-se de rica análise sobre o conjunto de evidências que apontam para o colapso de democracias tradicionais.
A certa altura, advertem os autores para os “sinais de alerta” para a sobrevivência democrática: “Nós devemos nos preocupar quando políticos: 1) rejeitam, em palavras ou ações, as regras democráticas do jogo; 2) negam a legitimidade de oponentes; 3) toleram e encorajam a violência; e 4) dão indicações de disposição para restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia.”
Ocupo-me, aqui, do quarto “sinal de alerta”, apontando um preocupante diagnóstico: temos presenciado um desavergonhado empreendimento de silenciamento forçado da crítica ao governo no Brasil (e a seu governante). Esse movimento, letal à liberdade de expressão, vem ganhando força com prisões e inquéritos instaurados com base na Lei 7.170/83, a Lei de Segurança Nacional (LSN).
Inspirada na “doutrina da segurança nacional”, a LSN foi promulgada em 14/12/1983 pelo último presidente militar, João Batista Figueiredo. Apesar de nascer já no período final da ditadura civil-militar brasileira, a LSN segue o espírito de leis que a antecederam: abundante em textos propositalmente vagos e imprecisos, incorpora o receituário próprio de um regime de exceção, viabilizando a perseguição política de adversários por vias institucionais e promovendo a desmesurada restrição a direitos de pessoas que se não se alinhem ao credo governamental. Em poucas palavras, trata-se de um estorvo autoritário que sequer haveria de ter ultrapassado o pórtico da transição democrática.
Entretanto, essa herança dos anos de chumbo até hoje não foi definitivamente defenestrada da ordem jurídica brasileira, ao menos formalmente: não foi revogada por outra lei e não há qualquer declaração do STF, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, que a repute não recepcionada pela Constituição de 1988 (em que pese existam, ao menos, quatro ações ajuizadas com esse objetivo).
Seja como for, esse fóssil normativo insepulto não seria motivo de preocupação caso houvesse caído em merecido esquecimento, ausentando-se “naturalmente” da realidade por absoluta inadequação ao tempo presente. Mas a LSN sobreviveu às sombras da democracia. Aquele passado, conforme profetizou Millôr, nos aguardava no futuro. Após algum tempo sendo rara e esporadicamente invocada, a LSN foi definitivamente despertada de seu ostracismo nos últimos anos. Ressurgiu como um modismo, talvez por estampar as debotadas cores do momento.
Dados recentemente divulgados mostram que, dos 188 inquéritos abertos com base na LSN nesta década, mais da metade (107) aconteceu de 2019 para cá. Apenas neste ano (até 17 de junho), já são 23 casos, que representam 80% do total registrado em 2019. (Fonte: O Globo, editorial de 04/07/2021).
Por trás dos números há histórias. Casos como o do sociólogo Tiago Rodrigues, investigado criminalmente por estampar em outdoors mensagem afirmando que o presidente valia menos que um “pequi roído”; ou a do professor Arquidones Bittes, preso em flagrante por carregar em seu veículo, nos protestos de 29 de maio, bandeira com os dizeres “Fora Bolsonaro genocida!”, situação semelhante à de cinco jovens presos em Brasília, também em protesto. E por aí se vão cidadãos comuns, políticos, jornalistas e tantos outros tornados “criminosos de opinião”, enquadrados na Lei 7.170/83 por suas críticas.
Vivenciar o projeto democrático de 1988 e alcançar o nível de cidadania ali inscrita passa por eliminar as permanências autoritárias que, não obstante vivam clandestinamente na democracia, se assanham e fazem suas vítimas, como temos visto. É de fundamental importância, portanto, que se promova o sepultamento definitivo desse cadáver adiado, seja a partir da iniciativa do Poder Legislativo ou do Poder Judiciário.
Que estejamos libertos, de vez, de mais essa página do “passado que não passa”. (Henry Rousso)