Pelas frestas, grafite vive a realidade da arte sob encomenda
Grafiteiros juiz-foranos comentam as novas possibilidades – e dificuldades – para sua arte a partir da contratação para serviços específicos
Tentar explicar as origens do grafite – termo pelo qual optamos em detrimento do italiano “grafitti” – e como ele conquistou espaço nas ruas de todo mundo transformaria essa matéria numa longa e cansativa palestrinha de história da arte, então vamos ao básico. O grafite como conhecemos surgiu nas ruas de Nova York na década de 1970, ligada à cultura do então nascente hip-hop, e aos poucos foi ganhando o mundo, apesar do preconceito que existe até os dias atuais com o que podemos chamar de subgênero da “street art”, que por sua vez é subgênero da… Ok, deu para entender que o assunto rende mais de metro de prosa.
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Divagações artísticas à parte, o grafite sempre procurou ocupar espaços abertos que estavam pedindo vida e cor, como muros e imóveis abandonados, assim como qualquer equipamento urbano em que fosse possível deixar a marca da criatividade. Ainda que seja estigmatizado e alvo de preconceito em pleno século XXI, o grafite foi elevando seu status, ganhando popularidade, e hoje são inúmeros artistas e suas “crews” que são convidados ou procurados para expressar sua arte não apenas pelas ruas, mas também em empresas e estabelecimentos comerciais, ou mesmo no interior de casas.
Juiz de Fora é uma cidade onde o grafite tem força e relevância graças a diversos artistas, e um deles é Claudim Melo, para quem a expressão é instrumento de educação que leva as bandeiras do hip-hop. “Com o tempo, os grafiteiros foram absorvidos pelo mercado, criando letreiros, painéis publicitários e artísticos, e com isso uma gama larga de estilos”, explica. “É uma arte livre, sem formatação prévia, e por ter várias formas de produzir resulta numa diversidade. Temos o grafite em lugar abandonado, contratado, o de boca a boca em que nos oferecemos para fazer num determinado lugar.”
Para Claudim, a profissionalização começa a caminhar, mas a monetização ainda é desafio a ser superado. E exemplifica com um caso: “Um grafiteiro foi convidado para um evento de arquitetos, que até gostam muito do nosso trabalho, e falaram pra ele que teria ‘visibilidade’, e ele disse ‘já tenho visibilidade na rua’.” Mesmo assim, segundo ele, há exceções, como um amigo que largou o emprego para viver de grafite. “Eu mesmo desisti de muito trabalho por causa dessa discussão de valor, não consigo ficar negociando isso. Vejo que ainda fica muito nessa questão da pessoa te procurar e você ainda ter que provar seu valor.”
Apropriação cultural
Ao mesmo tempo em que vê alguma evolução nas relações, Claudim reflete sobre as implicações para os artistas nessa nova realidade. “Temos o mercado, as empresas que estão se apropriando do grafite. Acho uma questão delicada, num momento em que discutimos a questão da apropriação cultural. É uma discussão parecida com a música, que quando vai para o mainstream pode perder sua identidade”, exemplifica. ” E há a questão do poder público, que viu no grafite uma manifestação genuína da arte periférica. A Prefeitura tem programas de incentivo, encontros patrocinados pela Funalfa, um projeto que será feito por cinco grafiteiros no viaduto do Poço Rico.”
O grafite vai à escola
Claudim não tem o costume de aceitar encomendas de empresas e comércio em geral, mas muitas vezes indica outros artistas cujo estilo têm mais a ver com o que o cliente deseja. Seu foco está concentrado na parte educacional, como o que desenvolve desde 2016 com os alunos da Escola Estadual Francisco Bernardino, no Bairro Manoel Honório. “Se for um projeto de arte e educação com grafite, estou lá, porque me interessa muito. Ele foi muito importante para meu trabalho como professor, consegui muitos avanços na minha disciplina por meio do grafite, até levando nosso trabalho para outras escolas.”
Ele dá um exemplo do quanto foi válido o aprendizado. “Em 2019, tinha um aluno do terceiro ano que matava todas as aulas, só ia para a aula de artes. Conversei com ele sobre um projeto, depois ele me disse que estava com preguiça de voltar a estudar as outras matérias, que só faria as aulas de arte, então demorei quatro meses para que não abandonasse, só podia pintar durante minhas aulas. Ele passou a ser elogiado pelos outros professores, e hoje é estudante do curso de artes na UFJF”, comemora. “Quando começamos a pintar os muros da escola, os rabiscos nas carteiras nas salas de aula sumiram.”
Desrespeito e supressão de identidade
Artista plástico experiente, Lúcio Rodrigues, o Lução, diz que parte fundamental de sua renda vem desses trabalhos sob encomenda, isso desde o início dos anos 2000. “Faço minhas exposições, mas o que tem garantido meu sustento são os trabalhos de rua, como o projeto que desenvolvi entre 2006 e 2010 com os pontos de ônibus, por meio da Lei Murilo Mendes. Mesmo assim, a Lei banca o seu sonho, mas não sua vida”, ressalta.
“Nesses casos, você tem um custo que nem sempre é remunerado”, prossegue, lembrando o desgosto que teve, em meados de 2014, quando seu trabalho nos pontos foi arbitrariamente coberto por tinta cinza sem o seu conhecimento e consentimento. “Fazemos um trabalho e não temos reconhecimento na cidade. Alguém fotografou esse trabalho e enviou para um prêmio da faculdade de arquitetura da UFMG, e ganhei o prêmio de Gentileza Urbana. Enquanto isso, aqui, não houve menção ao meu trabalho e a Prefeitura veio e simplesmente cobriu tudo. Acho que a população gostava do trabalho, mas os políticos, não. Ser artista em Juiz de Fora é ter resiliência.”
Lução tem como compensação o fato de o grafite e a arte de rua terem conseguido espaço além dos muros e outros elementos urbanos da cidade, o que ajuda a manter seu ganha-pão, ainda que as ofertas de trabalho tenham caído drasticamente com a pandemia. “Fiz muito trabalho comercial para oficinas mecânicas, açougues, lojas em gral. Pintei muito quarto particular, mas foi uma coisa bem voltada paro ego da pessoa, fiz muita coisa que não queria”, relembra. “Muitas vezes não pude imprimir meu estilo, pois é um trabalho direcionado, ‘quero que você desenhe um parafuso aqui’, mas sempre diversifiquei minha linha de trabalho, pois faço tatuagens, pinto quadros, esculturas, além do grafite.”
Se esses trabalhos sob encomenda podem garantir o pão, o aborrecimento reside, além da interferência no trabalho, na desvalorização monetária de seu ofício. “Não tem reconhecimento. Tenho deixado de fazer trabalho nos últimos dois ou três anos por causa disso, por não concordarem com o orçamento”, critica. Apesar da queda de ofertas de trabalho com a pandemia, Lução diz que está tranquilo. “Eu e minha esposa vivemos de forma simples, então não precisamos de muito dinheiro. Tenho feito tatuagem aqui em casa, com todos os protocolos, às vezes um amigo compra alguns trabalhos meus, como esculturas em madeira. Vou sobrevivendo. Fiz apenas um trabalho de decoração na casa de uma amiga, umas pinturas na casa dela, algumas placas de loja, além de alguns serviços como designer gráfico. Também fui selecionado para o edital para fazer o grafite no viaduto do Poço Rico, inaugurado ano passado, mas não pudemos começar por causa da pandemia.”
Grafite em lugares inusitados
Grafiteira há pouco mais de uma década, Pekena Lumen acredita que o grafite teve um processo de aceitação em Juiz de Fora mais lento do que em relação ao país em geral, mas que hoje em dia ele pode ser encontrado em lugares no mínimo peculiares. “Eu recebi, por exemplo, uma proposta – que aceitei – de fazer grafite em um consultório dentário. Há marcas que absorvem muito isso, e a arte mural e o grafite acabaram sendo absorvidos a partir do momento que passaram a ser melhor entendidos”, argumenta. “A partir do momento que você vê o grafite numa novela, na cultura de massa, numa capa de caderno, isso ajuda, acaba sendo cooptado pelo sistema.”
Quanto a essa absorção representar retorno financeiro, Pekena lembra que os grafiteiros já estão acostumados com o fato de sua arte ser mais efêmera, de não ter a mesma valorização de quem entrega sua obra em um quadro. “Muitas vezes, você faz seu trabalho na rua e duas semanas depois alguém já apagou. Isso chateia, mas já estamos acostumados. E isso vale para os trabalhos comerciais. Tem cliente que pede para fazermos quase de graça, com o papo de que vai ajudar a divulgar nosso trabalho. Alguns ainda aceitam, mas a maioria, não.”
No caso de Pekena, ela já não faz grafites para clientes, mas sim uma adaptação do grafite. “Como sou formada em design, procuro ouvir o cliente, e para conseguir trabalhos extras, preciso me adequar ao que ele deseja, e a maioria dos grafiteiros que conheço segue esse pensamento. É questão da comercialização, de juntar o pensamento do artista e do cliente”, argumenta, lembrando que também tem o costume de recomendar amigos cujo trabalho tem mais a ver com o que o contratante deseja, e vice-versa. “Fazemos nosso jogo de pintura para sobreviver. Há exceções, como um trabalho que fiz para o Sesc, que tinha cunho social, então tive muito mais liberdade criativa.”
Há quase dez anos, Pekena Lumen trabalha no programa Gente em Primeiro Lugar, da Funalfa, dando aulas de artes visuais com outro grafiteiro, Stain, incluindo sua arte principal nas atividades, estendendo a atividade para diversos bairros. O grafite comercial fica, então, como trabalho paralelo, mas também nunca deixou de fazer os trabalhos artísticos nas ruas, em especial com a sua “crew”, a Underground.
Pior do outro lado do mundo
Se por aqui o trabalho dos grafiteiros vem encontrando mais espaço, do outro lado do mundo a situação parece ser mais complicada. Davidson Lopes, o Bula Temporária, conta que se mudou para a Austrália “acidentalmente”, ao contrário de outros brasileiros, e seu trabalho como grafiteiro não foi bem recebido. “Eu vim porque minha parceira é australiana. Nós nos conhecemos quando ela estava morando no Brasil, nos apaixonamos, e depois mudamos para cá. Eu, particularmente, não sou artista aqui, meu trabalho não foi bem recebido, pois é um trabalho original, espiritual e espontâneo”, conta.
“O grafite, aqui, é tratado como algo marginal. Imagine uma colonização inglesa. Não respeitam nem os aborígenes, imigrante então… O grafite daqui é bem diferente do Brasil, onde vivemos uma arte espontânea, africana, tudo misturado. Aqui o governo tenta controlar o tempo todo. Onde moramos, na zona rural, é mais difícil fazer grafite ilegal, dá muita treta, eles preferem o realismo. Já em cidades maiores, como Melbourne, não tem como controlar, tem muita influência de estilo americano de grafite, do hip-hop. Você tem os trens todos pintados. Aqui, a palavra grafite é ligada com o ilegal.”
Davidson diz ter ficado desanimado de pintar muros no último ano No Brasil, complementava a renda como produtor de vídeo; na Austrália, como torneio mecânico em jornadas de oito horas diárias. “Fizemos até algumas pinturas pagas, com uma remuneração boa, mas no mesmo padrão do Brasil, mil contos por um muro de dois metros de altura por cinco de largura. Se é para uma prefeitura, órgão ou instituição, aí você cobra mais. Mas para as pessoas comuns, a casa de alguém, um comércio, você cobra menos. Às vezes, você é remunerado para pintar um lugar e usa isso pra doar de volta para todo mundo, pintando outro lugar de graça, tipo um Robin Hood.”
Fora das galerias
Professor do IAD, artista plástico e coordenador do Coletivo Agrupa – de arte mural -, Ricardo Cristofaro defende que o mercado de arte vem se modificando gradativamente. Na sua opinião, o jovem artista talvez almejasse anos atrás entrar nas galerias, sendo que a arte contemporânea funciona de outra maneira, com o grafite e a arte de rua sendo expoentes dessa nova perspectiva.
“Ela (a arte contemporânea) não é tão propensa à perspectiva da galeria, pois em muitos casos é experimental, avessa ao objeto artístico que se leva para casa. O que dificulta muito a sobrevivência do jovem artista, que pode ter essa prática experimental amadurecida, mas a sobrevivência financeira é um pouco difícil. Por isso, acho que essa ideia do muralismo, do grafite e sua comercialização, é um novo mercado que se abre dentro dessa perspectiva, sobrevivendo desse trabalho, mas sem deixar de sobreviver desse experimentalismo.”
Cristofaro cita como exemplo o seu próprio coletivo, o Agrupa, que realiza um trabalho junto à arquitetura e é contratado para trabalhos específicos. “Participamos de editais para nos mantermos ativos, conseguindo meios para seguir certas propostas. Não deixa de ter essa característica urbana, mas que acaba se colocando em lugares diferentes quando um empresário ou comerciante contrata artistas do muralismo para trabalhar em locais específicos. Existem outras formas de sobreviver no mercado da arte, e esse território contemporâneo da arte abre outras possibilidades. O artista tem que parar com essas coisas românticas de não querer pegar encomendas. Sempre se trabalhou sob encomenda, e muitas vezes ele é a pessoa melhor capacidade para fazer isso.”