Há 93 anos, o escritor Mário de Andrade trouxe à luz um personagem que é a cara do Brasil. Não de um país pronto e acabado, porque isso o Brasil nunca foi, mas em busca de sua identidade. “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, é a minha leitura mais recente, e, lido sob o prisma de 2021, a obra, publicada em 1928, tem muito a dizer. Uma das frases mais conhecidas do livro é: “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”.
Se à primeira vista o slogan parece uma piada, uma brincadeira com as sonoridades das palavras, no fundo, é profundamente um diagnóstico sobre as mazelas do Brasil em construção ou em desconstrução. Se lá no início do século passado, saúde era algo que a população carecia, ainda hoje essa é uma necessidade premente. Principalmente, se for levado em conta as mais de 200 mil mortes patrocinadas pela pandemia de Covid-19.
Que a saúde é artigo de primeira necessidade neste país, ninguém discorda. Assim como não há dúvidas a respeito da ausência de meios para que a saúde dos brasileiros seja preservada. E, infelizmente, sem saúde, fica difícil equilibrar outras áreas, como economia e educação. Não é difícil confirmar que estamos mal.
Basta folhear o jornal, acessar a internet ou ligar a televisão para a constatação: desemprego que tira a dignidade de milhões de trabalhadores, quebradeira sem chances de recuperação, violência escancarada e muita corrupção. Assim, não há como o Brasil não estar adoecido. Falta saúde e sobram as saúvas!
A saúva, como se sabe, é uma formiga, e uma das mais sérias pragas agrícolas que se tem notícia. Ela conta com mais de 200 espécies e pode ser encontrada em todo o Brasil. Seu modus operandi é trabalhar na calada da noite, roubando as folhas das plantas. Se nada for feito, as saúvas são capazes de provocar grandes prejuízos na lavoura.
Semelhanças não faltam entre saúvas e diversos personagens que configuram a atual narrativa brasileira. Seres nocivos e inescrupulosos que não trocam de roupa para desfilar com sua arrogância e sentimento de que estão acima da lei. Sem pudores, agem com desonestidade intelectual, numa tentativa de falsificar a realidade, ludibriando os mais incautos. Semeiam a discórdia, fazendo acreditar que os fins justificam os meios.
Desde o seu lançamento, “Macunaíma” é considerado um marco na literatura nacional. Mário de Andrade, impregnado das ideias modernistas, engendrou uma obra genuinamente brasileira, com estética e linguagens próprias, uma vez que reúne práticas das narrativas e das músicas, das falas, dos ditos, contos e cantos populares do Brasil.
É um livro que seduz e, como apontam especialistas, é, ao mesmo tempo, deslumbrante e triste, como o Brasil. País que, como o personagem Macunaíma – que nasce negro e vira branco- está à procura de sua identidade, ou melhor dizendo, de suas identidades, porque é fruto do encontro – ou desencontro – de etnias indígenas, africanas e europeias. Uma miscigenação que ora é odiada, ora é amada. O certo é que o apaziguamento de corações e mentes virá pela via da empatia e da justiça social, quando, com certeza, teremos chances de ter mais saúde!