‘Nunca negociei coisa alguma’: O retorno da poeta Maria LĂșcia Alvim
Em entrevista, poeta Maria LĂșcia Alvim, que desde 2011 vive em Juiz de Fora, fala sobre passado num Rio de Janeiro efervescente, presente longe da criação, e futuro de expectativas com novo livro, “Batendo pasto” (RelicĂĄrio), primeiro inĂ©dito em 40 anos
“Eu, agora, vou te fazer uma pergunta: o que vocĂȘ estĂĄ achando do mundo? Vai acabar ou nĂŁo vai acabar? NĂŁo acha que o mundo estĂĄ começando a acabar, nĂŁo?”. Diante de uma resposta afirmativa, Maria LĂșcia Alvim diz: “EntĂŁo estamos de pleno acordo”. Prestes a completar 88 anos em outubro, a poeta celebrada em cinco livros publicados entre 1959 e 1980 espera o fim do mundo em Juiz de Fora.
HĂĄ quase uma dĂ©cada reside na cidade, apĂłs ter nascido e crescido em AraxĂĄ – de onde vĂȘm seus dois irmĂŁos tambĂ©m poetas, entre eles o reverenciado Francisco Alvim-, ter vivido por anos no Rio de Janeiro e passado uma temporada numa fazendo no interior de Minas. Foi com a vista das montanhas verdes que Maria LĂșcia Alvim escreveu “Batendo pasto” (Editora RelicĂĄrio), livro que artesanalmente compĂŽs e pediu que o amigo, o poeta, professor e tradutor Paulo Henriques Britto guardasse. A publicação, segundo ela, deveria ser feita apenas depois de sua morte.
Ricardo Domeneck, incentivado por Guilherme Gontijo Flores – dois nomes da poesia contemporĂąnea brasileira -, hoje vivendo em Berlim, viajou para encontrĂĄ-la e convencĂȘ-la do contrĂĄrio. Encontrou-a vivendo numa residĂȘncia terapĂȘutica no Bairro Bom Pastor, com longos cabelos e a encantadora lucidez que transborda em “Batendo pasto”.
Na entrevista por telefone, a dias do lançamento do livro, que chega Ă s livrarias nesta segunda (24), Maria LĂșcia Alvim fala sobre o passado produtivo, a rotina pacata, a distĂąncia dos poemas e a decisĂŁo de publicar um jĂĄ elogiado tĂtulo, seu primeiro inĂ©dito apĂłs exatos 40 anos. Antes tarde do que mais tarde. “Quando escrevi, senti que ia viver bastante, atĂ© por ter uma famĂlia longeva. Agora resolvi abrir mĂŁo, porque estĂĄ chegando a hora do bloco passar.”
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Tribuna – Por que guardar o manuscrito de “Batendo pasto” assim que acabou de escrevĂȘ-lo?
Maria LĂșcia Alvim – Eu era muito moça ainda e gostava de ficar com o manuscrito, me dava segurança ter um trabalho feito por mim e perto de mim. Bobagem de pessoa inexperiente. NĂŁo tinha razĂŁo nenhuma especial. Foi um acidente, uma das falhas da minha vida profissional, que nem profissional era, para falar a verdade. De modo que nĂŁo tenho uma explicação muito especial para isso. Acontecia que naquela Ă©poca eu nĂŁo tinha mais muita vontade de fazer as coisas, nĂŁo. Gostava de ficar com elas em casa. De vez em quando mexia num livro, mexia n’outro. Se saĂa um ou outro, eu sentia falta. Era assim a minha vida. Agora jĂĄ estou muito velha para tomar as decisĂ”es definitivas, que estĂŁo sendo tomadas pela Luciana, pelo Humberto, meu sobrinho, que vai ser o dono da minha obra. Obra! Imagina falar em obra. TĂŁo pedante! VocĂȘ me desculpe, viu?!
Naquele momento vocĂȘ esperava um reconhecimento maior por parte do mercado ou da crĂtica? Foi algo que te angustiou?
Para te dizer a verdade, a crĂtica, para mim, Ă© muito relativa. Sempre fui de as pessoas gostarem dos meus livros, outros nĂŁo gostarem. Mesmo dentro da famĂlia, entre os mais prĂłximos sempre houve essa celeuma. Quando fiz o “Romanceiro de Dona BĂȘja”, meu irmĂŁo Chico meteu o pau, disse que aquilo era uma bobagem, escrever um romanceiro no sĂ©culo XX. Fui tocando e fazendo tudo o que fiz. NĂŁo me incomodava. Nesse ponto sempre fui muito independente. Achava que tinha que ser feito e fazia.
“Fui tocando e fazendo tudo o que fiz. NĂŁo me incomodava. Nesse ponto sempre fui muito independente. Achava que tinha que ser feito e fazia”
Os textos de apresentação escritos por Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores apontam como vocĂȘ, durante sua trajetĂłria, se distanciou dos clubes e grupos, sempre fora do estabelecido. Isso era intencional?
Nunca gostei de grupos. Sempre fui uma pessoa sĂł. Nunca fiz nada em grupos, a nĂŁo ser com os amigos mais Ăntimos possĂveis. Nunca fiz negĂłcio. Nunca negociei coisa alguma. Em todos os sentidos da minha vida, nunca negociei. Ă uma palavra que nĂŁo cultivei e nĂŁo cultivo. Com uma grande paz de espĂrito e uma grande tranquilidade, acho uma felicidade ter conseguido esse milagre. Num mundo em que sĂł existe a palavra comĂ©rcio. VocĂȘ concorda, nĂŁo Ă© mesmo?! Espero que esteja concordando. Tudo meu foi espontĂąneo, natural. Foram momentos variados. Acho que me saĂ bem nesse ponto. NĂŁo deixei ninguĂ©m me invadir e tambĂ©m nĂŁo invadi a vida de ninguĂ©m.
Como lĂȘ “Batendo pasto” hoje? Ă um livro que te toca da mesma forma que tocava na dĂ©cada de 1980?
Para falar a verdade, é meu filho distante. Chamo meus livros de meus filhos. Não vejo ele hå muito tempo. Faço meus livros manuais e, quando vou publicar, apresento. Esse é um livro que sempre me acompanhou, mas nunca tive a pretensão de mostrå-lo, andando com ele embaixo do braço. Ele estava perto. De vez em quando eu dava uma lidinha, achava engraçado, bonitinho.
O que essa imagem do campo, esse pasto, representa para vocĂȘ hoje?
Ă o Ășnico lugar onde eu, estando em pĂ©, nĂŁo estando deitada como fico, sinto meus pĂ©s. Ă onde eu me sentia segura. A terra Ă© o chĂŁo. Eu me sinto segura no chĂŁo dos matos, da natureza, nĂŁo no chĂŁo das cidades.
“A terra Ă© o chĂŁo. Eu me sinto segura no chĂŁo dos matos, da natureza, nĂŁo no chĂŁo das cidades”
Como Ă© estar longe desse chĂŁo? Ou ele nĂŁo estĂĄ distante?
Ă como se eu estivesse sozinha, comigo mesma. Ele, entĂŁo, passa a ser eu. E eu sou ele. NĂŁo estĂĄ distante, porque eu sou esse chĂŁo. Ă como se fosse uma parte de mim. Uma parte fĂsica de mim.
O Paulo Henriques Britto faz uma anålise de um de seus poemas, mostrando como som e imagem são valores tão importantes na sua poesia. Existe, na sua criação, essa preocupação?
Nunca tive uma preocupação especial, nĂŁo. Quando eu estava fazendo alguma coisa, era o que saĂa.
E em sua vida, quais eram suas preocupaçÔes depois da escrita de “Batendo pasto”?
Foi uma trajetĂłria de um mundo diferente. Eu estava morando no Rio, como sempre morei. A parte da minha vida de roça, de campo, de fazendas jĂĄ estava distante, acabou com “Batendo pasto”. SaĂ de uma zona de vida para a outra, tranquila. Comecei a escrever outro livro. Foram dois livros opostos um do outro, absolutamente opostos. Depois escrevi alguns poemas que estĂŁo soltos, nĂŁo estĂŁo nem intitulados. SĂŁo poemas avulsos que estou juntando para fazer um livro diverso.
Hoje a escrita faz parte de sua rotina?
NĂŁo, ao contrĂĄrio. Ă, justamente, a Ășnica coisa que nĂŁo faz parte da minha vida (risos). O ritmo de vida que estou levando Ă© mais prĂłximo do de uma cigana, absolutamente livre, completamente desfeita de programaçÔes sĂ©rias de vida. Vou fazer isso, vou fazer aquilo outro, nĂŁo. Vivo o dia presente e me sinto muito sem responsabilidade com coisa alguma. NĂŁo tenho nenhuma responsabilidade com a minha vida, que estĂĄ dependendo da pandemia (risos). Infelizmente, nĂ©?!
“O ritmo de vida que estou levando Ă© mais prĂłximo do de uma cigana, absolutamente livre, completamente desfeita de programaçÔes sĂ©rias de vida. Vou fazer isso, vou fazer aquilo outro, nĂŁo. Vivo o dia presente e me sinto muito sem responsabilidade com coisa alguma”
Quando se mudou para Juiz de Fora?
Vim fazer uma operação de catarata. Vim para cĂĄ em 2011 e estou aqui atĂ© hoje. Vim para ficar trĂȘs meses, fazer a catarata, ter alta e voltar. Conheci a Luciana, que veio a ser minha cuidadora, e gostei muito de Juiz de Fora, um lugar onde tenho muitos contraparentes longĂnquos, uma cidade que tem ainda aquele cheiro de barroco. Fiquei num hotel adorĂĄvel, o SĂŁo Luiz (na Rua Halfeld, prĂłximo Ă Praça da Estação), todo em art nouveau, muito bonito. Me apaixonei por aquele lugar e fui ficando, passei cinco anos lĂĄ. Depois, meu irmĂŁo, que estava me bancando, achou que eu estava folgada demais (risos) e, entĂŁo, aluguei uma casa. Fui morar e nĂŁo gostei. AĂ estou agora numa residĂȘncia terapĂȘutica vai fazer dois anos.
E gosta de viver aĂ?
A gente mora onde encontra um recanto, onde possa gostar de ficar num canto. Aqui nĂŁo Ă© ruim, nem bom. Ă mezzo a mezzo (meio a meio). Ă inexplicĂĄvel.
Tem contato com seu irmĂŁo Chico Alvim?
Ele vem aqui muito pouco e nos falamos por telefone pouquĂssimo. Detesto ficar naquelas conversas banais. NĂŁo dĂĄ. Ele fica lĂĄ e eu aqui. De vez em quando ele faz umas brincadeiras comigo. Assim vamos levando. Somos os dois Ășnicos que sobraram da famĂlia. O (Carlos) Drummond dizia: nĂłs somos os sobrantes. Eu tambĂ©m vim como Drummond, eu sou a sobrante. Acabou tudo. Agora sĂł tenho Luciana, que estĂĄ aqui ao meu lado, uma pessoa maravilhosa.
“Eu tambĂ©m vim como Drummond, eu sou a sobrante. Acabou tudo”
VocĂȘ viveu num meio social agitado. O que mais te marcou?
Os anos 1950, para mim, foram os dourados. Amei os anos 1950. Depois, nos anos 1960 achei que a vida deteriorou muito, tanto o Rio de Janeiro, quanto as pessoas. Os 1950 foram tão fantåsticos que deixou um espaço muito pequeno para que outras coisas pudessem aparecer.
E com quem travava o maior diĂĄlogo?
Eu convivia a maior parte do tempo com estrangeiros. Trabalhava numa galeria de arte, a Petit Galerie, que era o Montparnasse (bairro da elite intelectual de Paris) de Copacabana. Era na Avenida Atlùntica, em frente ao mar. Trabalhei lå por muito tempo, com exposiçÔes de pintores célebres. Depois trabalhei com meu pai, quando foi presidente de uma companhia hidrelétrica. Fora disso não trabalhei mais fora, a não ser numa galeria ou outra, coisa rara.
Algum amigo daquele tempo resistiu ao tempo e Ă distĂąncia?
Alguns resistiram, mas o que estou notando Ă© que meu entourage diminuiu muito. As pessoas nĂŁo estĂŁo vivendo muito. Os amigos Ăntimos que estĂŁo vivos ou estĂŁo doentes, ou estĂŁo de cama, ou nĂŁo andam mais. Estou muito sozinha nessa parte. Eles foram pessoas muito machucadas. A pessoa com quem convivo mais nos Ășltimos anos Ă© a Luciana (cuidadora).
“Os amigos Ăntimos que estĂŁo vivos ou estĂŁo doentes, ou estĂŁo de cama, ou nĂŁo andam mais. Estou muito sozinha nessa parte”
A leitura faz parte da sua vida hoje?
NĂŁo mais. O Ășltimo livro que li com atenção e interesse foi “L’idiot de la famille”, a biografia que o (Jean-Paul) Sartre fez sobre o meu querido (Gustave) Flaubert. A paixĂŁo da minha vida como escritor foi ele. Meu irmĂŁo comprou esse livro e me emprestou. EstĂĄ na minha cabeceira. Fiquei muito interessada com certos aspectos da vida do Flaubert. Sou muito parecida com o Flaubert, viu?!
Seu livro “Batendo pasto” jĂĄ chama atenção de uma geração mais jovem. Como Ă© ser lida pelos jovens?
Estou adorando. Depois que vocĂȘ fica velho, fica se odiando. Ă horrĂvel. NinguĂ©m imagina que coisa terrĂvel Ă© a velhice. Nem vale a pena explicar. E estou adorando que os jovens se aproximem de mim e de minhas coisas. Quero que cheguem cada vez mais perto, a um palmo de distĂąncia de mim, para a gente poder se entender um pouquinho.
“Estou adorando que os jovens se aproximem de mim e de minhas coisas. Quero que cheguem cada vez mais perto, a um palmo de distĂąncia de mim, para a gente poder se entender um pouquinho”
Ainda preserva uma alma jovem?
Muito ranzinza (risos). Mas preservo. Gosto desse lado meu.
E esse livro te cria expectativas quanto aos dias que ainda vĂŁo vir?
Se tenho expectativas, finjo que nĂŁo tenho. Qualquer perspectiva para o futuro Ă© absolutamente um faz de conta, de modo que eu finjo que nĂŁo estou vivendo essa fase, nĂŁo. Finjo que estĂĄ tudo bem, que os dias sĂŁo eternos, que a pandemia vai sumir e vai voltar tudo a ser como era. Vou tapeando, vou tapeando. NĂŁo posso me deixar levar pela vidinha. A vida Ă© madrasta, entĂŁo, tem que ter cuidado.
LEIA MARIA LĂCIA ALVIM
Coluna
Era uma tarde frese, empelicada.
Eu vinha fria e fétida, mas vinha.
NĂŁo tinha resto meu, se tudo eu tinha
NĂŁo era nome ou rosto, de onde eu vinha.
Ele me viu da branca paliçada
E veio ao meu encontro, jĂĄ que eu vinha
Na mesma direção, pois que não tinha
Nenhuma outra saĂda, de onde eu vinha.
Paramos sobre a ponte. Promulgada
Intimava os atalhos, mais nĂŁo tinha.
Ele cercava o fogo até o cerne.
E fui ganhando brilho, por um nada.
Sem que nunca soubesse de onde vinha
A ressurgir no tempo em minha carne.