Juiz de Fora chega a cem vidas perdidas para a Covid-19
Especialistas consideram número alarmante e acreditam que medidas de controle da epidemia poderiam ter evitado mortes
Juiz de Fora registrou, nesta quinta-feira (23), o centésimo óbito em decorrência da Covid-19. A nova vítima fatal da pandemia na cidade é um idoso de 83 anos, sem histórico de comorbidades. A triste marca de cem mortes foi alcançada cinco dias depois de a cidade evoluir para a onda branca do programa estadual Minas Consciente, que prevê a retomada gradual das atividades econômicas. Sem a perspectiva imediata de vacina ou de tratamento eficaz para a doença, especialistas ouvidos pela Tribuna consideram o isolamento social e medidas de mitigação, como uso de máscaras e álcool gel, fundamentais para frear a incidência de casos e, consequentemente, as mortes. Com a retomada de algumas atividades que não estavam em funcionamento até o último sábado (18), com a migração do município para a onda branca, combinada ao crescimento do número de infectados, entretanto, as perspectivas não são boas, já que a circulação nas ruas só tende a aumentar. Com isso, apontam os analistas, mais vítimas deverão ser contaminadas, e mais vidas podem ser perdidas.
Conforme os dados do boletim epidemiológico desta quinta, além do óbito, 60 novos casos de Covid-19 foram confirmados em 24 horas. Com as atualizações, o município já registra 3.224 confirmações da doença dede o início da pandemia. No mesmo período, novas 117 notificações de síndrome gripal foram registradas pela Prefeitura. Com isso, o número de suspeitas da doença chegou a 12.146.
Informações disponibilizadas pela Prefeitura, por meio do painel gerencial de dados da Covid-19, mostravam que até as 19h desta quinta-feira, a taxa de ocupação total de leitos de UTI na cidade era de 74,64%. O painel também indicava, até o mesmo horário, que a média de isolamento social na cidade, nos últimos sete dias, era de 50,24%.
Mais que números
Os dados mais recentes ilustram o cenário que Juiz de Fora tem vivenciado atualmente. Enquanto o município segue há quatros meses com a taxa de isolamento em torno de 50%, conforme dados da Prefeitura, muitos estão morrendo, sobretudo idosos. A cidade já perdeu 83 moradores com mais de 60 anos e, junto deles, parte de sua história. Entre essas vítimas estavam 45 idosas e 38 homens da terceira idade. Pelo menos 73 tinham alguma comorbidade relatada, ao passo que as notificações dos outros nove não apresentavam essa observação. Mais da metade daqueles que faleceram (56), tinham entre 70 e 89 anos (ver quadro).
Mas não foram apenas possíveis “vovós e vovôs” que deixaram de existir fisicamente para seus entes queridos. Na estatística, que carrega a dor de muitas famílias, também há 17 pessoas com menos de 60 anos, sendo 12 homens e cinco mulheres. O levantamento realizado pela Tribuna, com base nos dados disponibilizados pela Secretaria de Saúde da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), indica que 14 desses adultos tinham algum histórico de doença anterior, enquanto três não tiveram outras patologias relatadas.
No grupo de adultos com comorbidades estão o técnico de enfermagem Agnaldo do Nascimento Emidio, 41 anos, que tinha doença cardiovascular crônica e morreu no dia 22 de abril, como o primeiro profissional de saúde silenciado pela Covid-19 na cidade, com sua voz reverberada em protestos da categoria; e o detento do Ceresp Vanderlei Luiz Cardoso, 53, que era diabético e faleceu no último dia 13, como o primeiro acautelado do sistema prisional infectado, de quem o coronavírus arrancou a chance de uma nova vida fora das grades.
A vítima mais jovem no município é uma mulher de 29 anos, que faleceu no dia 12 de julho e que tinha como comorbidade doença renal crônica. A mais velha também é uma mulher, 99, de quem a Covid-19 tirou a rara oportunidade de completar um século de vida. A idosa também era paciente renal e sofria de doença cardiovascular crônica.
Matéria publicada pela Tribuna em 7 de junho mostrou os rostos das vítimas por trás dos números e como as famílias enfrentaram as perdas de Affonso Schröder, 86; Hilda Machado Venerando, 91; Ilda Rizzo Rangel, 90; José Luiz Rezende Pereira, 70; Margarida Rosa de Souza, 79; e Marcos Luiz Rocha Marlière, 56. A Tribuna não teve acesso às identidades das outras dezenas de vítimas porque os nomes não foram divulgados.
‘Sempre lembrados’
Nesta quinta, com o registro da centésima morte, a Prefeitura emitiu nota lembrando que as pessoas que morreram, “50 homens e 50 mulheres, fazem parte da história da cidade, local que escolheram para construir suas vidas”. Na nota, a PJF pontuou que, desde março, quando foi registrado o primeiro óbito pela doença na cidade, os profissionais de saúde, voluntários e grande parte dos servidores municipais “trabalham de forma ininterrupta e incansável no enfrentamento à doença. Isso, é claro, não reduz a dor da separação, mas demonstra que nenhuma pessoa, em Juiz de Fora, veio a óbito ou teve agravado seu quadro clínico por falta de assistência.”
Por meio do texto, a Administração municipal manifestou solidariedade e condolências a todos que perderam alguma pessoa querida. “Eles e elas serão sempre familiares, amigos e amores de alguém. E assim serão sempre lembrados e lembradas.”
‘Risco maior a cada semana’
O infectologista Guilherme Côrtes considera “muito alarmante” a soma de cem óbitos. “Se tivéssemos conquistado o controle, principalmente nos três primeiros meses, teríamos evitado boa parte dessas mortes. Outra forma complementar para evitar isso seria uma estrutura de detecção de casos e de contatantes, com isolamento desses. Essa estratégia não foi implementada adequadamente.”
Côrtes avalia que, se a postura adotada fosse outra, visando à contenção da epidemia, mortes poderiam ter sido evitadas. “A cada semana que passa, temos aumento do número de casos e risco maior de se infectar por Sars-COV2. A cada semana, estamos com risco maior de adoecer e de morrer por Covid-19. Absolutamente não há nenhum dado que indique que há algum controle da epidemia na cidade ou região.”
Também para o pesquisador de engenharia biomédica Rodrigo Weber, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a situação preocupa. Integrante do grupo que elabora projeções da curva de contaminação na cidade, com uso da modelagem computacional, ele avalia que o isolamento social é a única estratégia, no momento, para evitar mais mortes ligadas à pandemia.
Estatísticas
Segundo ele, considerando o cenário atual, com o isolamento de cerca de metade da população, as análises indicam que o total de óbitos pode variar de 114 a 148 até o fim deste mês, ou seja, pode aumentar até quase 50% em menos de dez dias. Em uma avaliação pessimista, com menos pessoas em casa, a variação sobe para entre 126 e 162 mortes. Já em uma visão mais otimista, que elevaria para 75% a taxa de isolamento, os falecimentos até o final de julho ficariam entre 107 e 137.
“Chegamos, no máximo, lá no início, a cerca de 60% de isolamento. Mas se essa porcentagem tivesse sido mantida, hoje não teríamos passado de dois mil infectados”, avalia Weber. No entanto, a PJF já contabiliza mais de 3.100 casos confirmados, número que ainda pode estar dez vezes abaixo do real, segundo o professor, devido à subnotificação dos assintomáticos, que continuam transmitindo a doença, e daqueles com sintomas leves. Isso significa que Juiz de Fora já teria, na realidade, cerca de 30 mil contaminados. “Com a flexibilização, ao invés de estabilizar, começamos nova fase de crescimento exponencial.” Conforme Weber, nos estudos realizados pelo grupo da UFJF, a epidemia pode ser dividida em duas fases: até 3 de junho e após esta data. “Observamos queda do isolamento social na segunda fase, que levou a este momento que estamos vivendo, com mais casos a cada dia.”
Os dados levantados pela Tribuna também revelam a escalada das mortes por Covid-19 a partir de junho. Enquanto até o fim de maio, 36 pessoas haviam falecido por complicações da doença, o número saltou para cem em menos de dois meses, com maior incidência observada em julho, com mais de 40 óbitos em apenas três semanas. Weber observa que a primeira curva a subir é a de infectados, como aconteceu em junho na cidade. “A de óbitos vem depois.”
O ‘fim social’ da epidemia
O infectologista Guilherme Côrtes pontua que as epidemias, historicamente, têm dois possíveis fins: o médico e o social. “O médico é quando há algum tipo de intervenção científica para controlar a epidemia, no caso de doença por transmissão aérea, seja por advento de um tratamento ou vacina, que não existem ainda.” Segundo ele, também não foram implementadas medidas de saúde pública para conter o avanço do coronavírus. “Sabemos metodologicamente como se faz isso há décadas. Os países que conquistaram o controle da epidemia de Covid-19 fizeram isso com objetivo real e claro. Isso poderia ter sido feito, mas não foi. Nem na nossa cidade, nem no estado e no país. Existem evidências de países no mundo, com diferenças sociais e econômicas, que conseguiram controlar a epidemia. Eles tinham um alvo em comum: não ter mais casos.”
Seguindo o conceito, ao contrário das nações que conseguiram deter a disseminação do coronavírus, o que está acontecendo em Juiz de Fora, em Minas e no Brasil é o fim social, ou “aceitar a realidade de que vamos continuar convivendo com a incidência de casos”. “Aceitar essa realidade como inevitável e ‘normal’ é o fim social da epidemia. Certamente é o pior fim que pode haver: aceitar e passar a conviver com a ocorrência de doença.” Isso significaria que as pessoas cansaram de ficar com medo e optaram por conviver com a enfermidade.
O especialista observa que a mudança em relação às taxas de ocupação dos leitos de UTI ao longo desses quatro meses, que teria viabilizado a flexibilização, está relacionada ao aumento de unidades credenciadas para Covid, e não à diminuição de internações. “Na verdade, aumentamos o denominador dessas taxas, e o percentual se manteve relativamente estável (em um patamar alto, em torno de 80%).”
Preocupação com retomada
Ainda na avaliação do infectologista Guilherme Côrtes, Juiz de Fora ficou esses últimos quatro meses “em banho-maria”. “Não acabamos de implementar medidas que, de fato, pudessem controlar a epidemia, só arrastamos. Isso contribuiu para mais danos à economia”, dispara o especialista, citando a “discussão” que acabou colocando saúde e economia como se fossem questões opostas. “Os danos da economia serão maiores quanto mais longa for a pandemia. Em estudos de recuperação econômica pós-catástrofes, uma das variáveis que podem ser modificadas, no caso de epidemia, é torná-la mais curta e com menor impacto. Quanto mais tempo dura, mais desastroso é para a economia.”
O professor da UFJF, Rodrigo Weber, lembra que países que adotaram a estratégia de lockdown, como Coreia do Sul, Alemanha e Áustria, conseguiram eliminar o vírus. “Resolveram rápido o problema. Enquanto aqui tem sido feito o pior: não resolve a epidemia e temos o impacto econômico postergado.”
Para Côrtes, não existe dúvida de que a diminuição do distanciamento social, com as medidas de flexibilização, vai levar à aceleração da curva. “Esperamos que haja, progressivamente, mais casos/dia a partir das próximas duas ou três semanas, com a intensificação de abertura dessa onda branca (do Minas Consciente).” Apesar das perspectivas não serem as melhores, o infectologista pondera que Juiz de Fora conseguiu, de certa forma, fazer um achatamento da curva e evitar o colapso do sistema de saúde. “Com a taxa de isolamento girando em torno de 50% ao longo desses meses, a velocidade da epidemia, de fato, foi controlada. Mas não foi conquistado um controle. A velocidade de ascensão foi menor, mas não houve diminuição do número de casos em momento algum.”
Os especialistas ouvidos pela Tribuna apontam que não há qualquer indicativo de que tenhamos chegado a um pico, porque este só seria reconhecido após sua passagem seguida de uma queda significativa. Segundo eles, apenas após o declínio da “curva” é que poderia ter sido iniciada qualquer estratégia de retomada das atividades. “Tanto no parâmetro atual, quanto no pessimista, não vislumbramos pico”, observa Weber.
“Não conquistamos, em nenhum momento, uma queda nesta curva. E ainda estamos intensificando a abertura, mesmo na ascendência. Com isso, está muito claro que vamos tolerar a ocorrência de casos e levar a vida ‘normal’ ao mesmo tempo, para tocar a economia e a rotina de todos nós. Isso representa o fim social da epidemia: quando a sociedade se convence que é para ser assim mesmo, com mil mortes/dia no Brasil”, finaliza Côrtes.
Tópicos: coronavírus