Da janela lateral
A mineíríssima “janela lateral do quarto de dormir” na verdade fica atrás da cabeceira da minha cama. Tudo bem, não sou mineira – e nem gosto tanto dessa música, honestamente. Nas noites em que teimo em dormir com ela aberta, acordo com a garganta estranha, como a da cantora aqui da cidade, e temo por alguns momentos que o vírus tenha se enfiado em algum vão da porta ou até pela fechadura e me feito refém, enfim. Em alguns dias, quase desejo que isso aconteça, para ter logo os anticorpos, mas antes que complete o pensamento, meu medo absoluto de qualquer doença me interrompe. Melhor fechar a janela. Voltemos a ela então, a janela não lateral do quarto de dormir, que só me mostra outra janela, a de minha própria cozinha. De qualquer outra da casa, também só vejo um pedacinho de céu, só o suficiente para conjecturar sobre a meteorologia do dia.
Não vejo, mas ouço o caminhão de lixo passando às segundas, quartas e sextas. É fácil de lembrar porque me programo para deixar meus descartes à lixeira do prédio a tempo – uma das poucas circunstâncias em que o horário do lá fora interfere na pequena rotina criada aqui entre as minhas paredes. O caminhão que não se dirige sozinho coleta, pela cidade toda, o lixo que também não pula por conta própria na caçamba do veículo, ao passo em que quem precisa orquestrar todo o processo não tem escolha senão percorrer a rota, torcendo para que o vírus tenha seguido um rumo diferente. E assim fazem o trajeto, sem aplausos das janelas e sacadas (não que quem os recebe não mereça, muito pelo contrário).
Ninguém vê quem recolhe o que descartamos de nossas quarentenas, mas lá estão. Como quem faz o pão e o vende. Quem passa as compras e dá o troco dos estoques de papel higiênico da classe média, que enviou a empregada ao supermercado. Entrega segura para todo mundo, menos para quem entrega. Quem está na linha de produção das notícias que chegam às nossas telas, páginas e ouvidos já cansadas, porque antes de serem veiculadas tiveram duelos potencialmente mortais com fake news que se espalham tão rapidamente quando o Covid-19. Tanta, tanta gente que só tem a opção de continuar circulando por aí, de um lado a outro, para continuar vivendo. E a gente não vê, ou finge que não, para não termos que pensar além do nosso próprio desconforto.
Nem sempre as janelas trazem aplausos apenas. Tenho ouvido panelas sendo esmurradas e gritos que, do lado de dentro dizem “Fora”, e sei bem por quem se dobram. Na proposta de isolamento vertical, quem está na base da pirâmide socioeconômica não tem outro destino senão o habitual aniquilamento. Só acredita que a economia prevalece sobre a vida quem se beneficia dela de alguma forma e não, de fato, quem faz ela girar dando a cara a tapa e ao coronavírus. Quem desfaz de uma situação de pandemia com histórico já registrado pelo mundo demonstra não apenas ignorância, mas o desprezo por mais vidas que serão perdidas sem as devidas medidas de prevenção. E tenho uma certeza inabalável de que a infeliz máxima de que “brasileiro pula no esgoto e não acontece nada” só pode vir de quem tem total incapacidade – entre várias – de distinguir a si mesmo do próprio esgoto.