A professora universitária, escritora e pesquisadora uruguaia, radicada nos Estados Unidos, Cristina Rodriguez Cabral, foi a convidada do último “Encontros com a literatura”, realizado no primeiro semestre de 2019, na UFJF. Por cerca de três horas, a autora falou, principalmente, sobre “Memória & resistência” (Manatí, 171 páginas). Digo “principalmente”, porque falou também sobre sua vida. Todavia, sua biografia pode ser facilmente traduzida por meio da segunda palavra que compõe o nome do livro, publicado, pela primeira vez, em 2004.
A obra traz uma seleção de poemas e artigos que nos dão conta de sua militância social e de sua força para resistir a uma opressão tanto racial como de gênero. “O impulso de resistir vem do fato da existência do duplo racismo de gênero e etnia que, como mulher negra, tive que enfrentar na minha vida”. Quando fala de memória, Cristina se justifica que ela “há sido la energia vital que nos pemitió no entregarnos jamás y creer, pese a todo, en el ser humano”, dispara, para logo completar. “’Memoria y resistência’ es parte de mi vida y de la historia de millones de mujeres em nel mundo guerreando de diferentes maneras durante siglos. Desarrollhando variadas estrategias para vencer el genocídio mantenido sobre nuestros pueblos em lãs Américas.”
Já no primeiro poema da antologia, encontramos uma mulher que escreve numa condição de negra, latina, mãe de uma filha, também guerreira. “Soy uma negra uruguaya,/parida en lá América Mestiza/ con sangre Africana templando/ el tambor de mis venas./ Latina Hispana, sudamericana/ que más da;/ soy ante todo/ um Ser Humano,/ uma Mujer Negra”, versa ela, que acredita que se dizer autora negra mulher dentro do campo literário atual seja um rótulo que demarca e aprisiona, porém ainda necessário. “Enquanto vivemos em sociedades discriminatórias, acho importante mostrar o orgulho étnico na poesia como sinal da identidade de uma “minoria” invisível na academia e sem voz própria.”
Cristina Rodriguez Cabral é de Montevidéu. Tem formação em enfermagem e licenciatura em sociologia. Ainda é doutora em filosofia, título conquistado na Universidade de Missouri, sediada nos Estados Unidos. Entre as obras publicadas por ela, estão “Bahía, mágica Bahía”, trabalho que lhe rendeu o Prêmio Casa de las Américas, no ano de 1986, além de “Pájaros sueltos”, “Entre giros y mutaciones”, “Quinientos años después y hoy más que nunca”, “Desde el sol” e “Noches sin luna, días con sol”.
O bate-papo de hoje traz alguns dos principais apontamentos discutidos no dia do encontro com os alunos da graduação do Curso de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Falamos, entre outros assuntos, sobre a poesia que ela faz e que é vinculada à vida real, marxismo, o racismo que ela enfrentou quando tentou vir estudar no Brasil e os sonhos que ela tem para a literatura que faz.
Marisa Loures – Sua obra tem um caráter social. Na conversa aqui em Juiz de Fora, você disse que tem formação marxista. Sua obra também seria um ato de resistência às políticas americanas de exclusão? E como você convive com essa questão lá?
Cristina R. Cabral – Sim, minha formação ideológica é marxista; mas, baseada na experiência e na pesquisa, afirmo que o maior problema do negro éétnico e, logo, de classe. O marxismo evidencia que, depois de abolida as diferenças de classes sociais, o racismo iria desaparecer; mas não foi assim. No capitalismo, um negro rico tem maiores oportunidades do que um pobre, mas os dois vão ter que enfrentar o racismo ou a discriminação em diferentes setores da sua vida. Minha obra literária é um ato de resistência às políticas racistas e discriminatórias em qualquer parte do mundo e sistema político.
– Você também trata da relação do homem com o consumo em sua obra. Como lida com o excesso de consumismo na sociedade americana sendo uma crítica dessa relação que acorrenta o homem?
– O excesso de consumismo é global, seja nos países desenvolvidos e nos em via de desenvolvimento. Todo mundo quer consumir carros novos, nova casa, roupa nova, última tecnologia, etc. Fica difícil resistir à compulsiva tentação de comprar quando os meios de comunicação, permanentemente, nos bombardeiam com propaganda consumista em que comprar equivale a ser feliz. O nível educativo das pessoas, suas ideologias e valores, podem controlar em certa forma esses impulsos acumulativos pelas coisas materiais.
– Por falar nisso, na introdução do livro “Memória & resistência”, você diz que fala da resistência porque seu cotidiano é o de “madre pobre, latina y negra, em um mundo donde, digamos… nos somos nosotros lo que regimos.” Acredita numa poesia que seja desvinculada da vida real?
– Não acredito em uma poesia desvinculada da vida real. Isso não significa que a poesia seja cópia fiel da realidade. Senão for uma reação artística do escritor aos eventos do mundo, uma recriação literária da realidade.
“O Brasil ainda segue discutindo o tema das ações afirmativas para as minorias, ainda continua matando negros na rua, sem ninguém fazer-se responsável. Ainda o cinema e a televisão brasileira buscam atores e atrizes brancos para o rol de protagonistas, ainda não tem embaixadores negros representando o país. Estamos no século XXI, gente, jáé tempo de realmente mudar.”
– Na palestra aqui em Juiz de Fora, contou que, quando saiu do Uruguai, tentou estudar aqui no Brasil. No entanto, deparou-se com um racismo muito forte. Acabou indo para os Estados Unidos. De que maneira o racismo se apresentou para você naquele momento? E como vê essa questão no Brasil atualmente?
– Nos anos 80, a Sudáfrica era, oficialmente, o primeiro apartheid do mundo, e o Brasil era, extraoficialmente, o segundo; mas essa situação era percebida pelos afro-brasileiros e parte da população progressista do Brasil. O resto acreditava no mito da democracia racial. O racismo, para mim, se manifestou no momento em que passei em todas as provas acadêmicas e da língua exigidas no processo de receber uma bolsa de estudos para uma universidade brasileira que já havia me aceitado. Fui jogada fora no último passo do processo, na entrevista com as autoridades da embaixada em Montevidéu. No momento em que o representante diplomático me viu, ele disse “não”. Não tive a mínima oportunidade por ser negra. Atualmente, vejo a situação no Brasil mais ou menos igual. Mudou pouco, sendo o segundo país com a maior população negra no mundo, depois da Nigéria. O Brasil ainda segue discutindo o tema das ações afirmativas para as minorias, ainda continua matando negros na rua, sem ninguém fazer-se responsável. Ainda o cinema e a televisão brasileira buscam atores e atrizes brancos para o rol de protagonistas, ainda não tem embaixadores negros representando o país. Estamos no século XXI, gente, jáé tempo de realmente mudar.
– Certa vez, conversei com a escritora Míriam Alves, uma das representantes da literatura negra brasileira. Na época, ela tinha dividido uma mesa com Ignácio de Loyola Brandão e João Almino nos Estados Unidos. Ela disse que estavam, os três, discutindo literatura numa mesa que fala “igual”. Ela é da opinião de que, nos Estados Unidos, valorizam “a nossa história de escrita literária”. Já no Brasil, quando não se consegue negar a existência da literatura negra, cria-se um gueto, “cria-se um quarto ao lado, nos fundos, para discutir a nossa literatura”. A briga dela é: “eu sou literatura brasileira e faço literatura negra. Eu quero estar numa mesa, como estive nos Estados Unidos, com Marina Colasanti. Quero estar com as mulheres brancas que fazem literatura assim como eu”. Essa nossa conversa aconteceu em 2016. Já se vão três anos. Você é uma escritora negra latino-americana. Sobre essa questão, como você vê esse cenário, hoje, em termos de América Latina?
– Coincido com Miriam Alves; isso acontece comigo no Uruguai também. Devemos nos lembrar de que os Estados Unidos representam o império, e latino-américa suas colônias, daí as diferenças. Fica mais fácil fazer coisas e obter reconhecimento intelectual no Império que nas colônias.
– O poema “500 anos depois” é uma crítica às comemorações do descobrimento, sobretudo, à escravidão africana e ao genocídio indígena. Nós sabemos que não há o que comemorar, talvez a palavra certa seja rememorar. Acha que esse tipo de atitude das autoridades, endossada pela sociedade, tem relação com a ausência de uma política de memória?
– Em Uruguai, não se festeja mais o 12 de outubro como o Dia do Descobrimento há muitos anos. De fato, eu participei nos anos 80 na comemoração do dia 11 de outubro como o último dia de liberdade para os índios. A gente saía à rua com os tambores rememorando o genocídio indígena feito pelos conquistadores. O trabalho das organizações afro-indigenistas, os sindicatos, os partidos políticos da esquerda, ajudou a criar na população consciência sobre o significado social e político da conquista da América, da invasão dos portugueses, espanhóis, britânicos, franceses e outros. Esse poema ao qual você se refere foi lido por mim na Embaixada Espanhola na celebraçãopelos 500 anos do descobrimento da América.
– Quais outras mulheres negras escritoras você gostaria de indicar para que conhecêssemos?
– São muitas, a lista é longa, e cada dia aparecem mais escritoras jovens fazendo rap, hip-pop, ou literatura oral em todo o mundo. Menciono algumas das clássicas norte-americanas: Toni Morrison, Maia Angelou, Sonia Sanchez, Alice Walker, Niki Giovanni. As latino-americanas: Edelma Zapata Perez, Shirley Campbell, Nancy Morejon, Georgina Herrera, Teresa Cardenas, Beatriz Santos, Virginia Brindis de Salas, Cristina Cabral. Realmente são muitas escritoras negras cujas obras foram publicadas e não publicadas. Essas escritoras afro-descendentes são intelectuais e ativistas com consciência social, racial e de gênero na sua escritura, além de criarem uma literatura de alto nível literário. Elas não fazem propaganda literária, fazem literatura.
– O que você ainda sonha para sua literatura?
– Que seja valorizada, avaliada e apreciada simplesmente como literatura, sem outros rótulos. Que as comunidades afrodescendentessaibam que é parte da minha contribuição na luta por um mundo mais justo, tolerante e igualitário.
“Encarando el exilio”, poema retirado do livro “Memória & resistência”
Por cristina Cabral
Antes de la puesta de sol
curaré mis heridas
me levantaré
sacudiré el povo maloliente
de mis zapatos
y echaré a andar…
antes que los recuerdos
horizonten mi cabeza
la sonrisa de mi madre
reflejada en el rostro de Nzinga
me enviará luz.
Naufrago
momentâneas tormentas
vida sin placer…
los fantasmas no me arrebatarán
los sueños
muralhas infranqueables caerán
lo imposible
solo cuesta um paso más.
Por eso cuando caiga la noche,
sin más tormenta
ni feos recuerdos,
ante
la
puesta de sol
serena estaré
y de pie
me bañarán
lãs estrellas.