Sete chaves
Podem me chamar de amarga, mas eu tenho verdadeiro pavor de “Canção da América”, um hino nacional à amizade, imortalizado nos versos e na voz de Milton Nascimento. Eu não sei exatamente por que, mas talvez pela melancolia e o tom pesado, quase fúnebre, que ele dá a um laço que só faz sentido se criado voluntariamente, sem amarras, permeado pela leveza. Entendo que se trata de uma canção de despedida, e que isso já a impregna de um certo desalento, compreensível, porque ninguém quer viver de sentir saudade. Mas ainda assim, me soa como algo muito distante do que essa modalidade de amor deveria ser para ser boa.
Dia desses, conversava com meu amigo Rômulo, que fico por longos tempos sem ver, e chegamos à surpreendente conclusão de que já nos conhecemos há quase 20 anos, uma vida adulta. E pensamos sobre como já há mais tempo que vivemos fora da cidade em que crescemos do que nosso período nela. E também sobre como quem nos conhece melhor na vida nos dias de hoje são pessoas que, caso o destino virasse uma esquininha diferente, seriam ilustres desconhecidos. Esses papos que a gente vai tendo conforme os anos vão passando. Logo cortamos o momento filosófico contando sobre nossas vidas, as dos outros, o país, tudo. Como se tivéssemos nos visto no dia anterior. Como sempre.
Se de fato Deus existe, ele que faça a cortesia de me livrar de guardar amigo e amiga “debaixo de sete chaves, dentro do coração”. Talvez seja essa a metáfora que tanto me agonia, a de conservar a amizade tão bem guardadinha, quase embalada a vácuo, como tem gente que faz com roupa nova, esperando uma “ocasião especial” para estrear. Até que a roupa não sirva mais, saia de moda ou, sei lá, ganhe manchas de tanto esperar para ser usada. Muito já fiz isso. Hoje não tem dia que não seja especial o suficiente para que eu vista o que quiser. Certas coisas na vida não são para serem guardadas, mas usadas em sua plenitude e a amizade, ao contrário dos tecidos – que infelizmente, mesmo os mais duradouros, esgarçam, desgastam-se, acabam – é algo que se renova quanto mais usada.
Longe de mim amizade com etiqueta, de tão preservada; e também daquelas que têm uma promissória de cobrança, sob ameaça de rompimento se uma parte se chatear, acusando a outra de ter “sumido” ou de ter se omitido de apoio. Entendo muito pouco da vida, mas sei que quem teme demais o melindre alheio acaba aprisionado. Quanto a mim e meus amigos e amigas, quero que fiquemos bem longe de sete chaves, completamente livres.