João Peçanha: “Escrever, contar histórias, é seduzir, é quase escravizar o leitor ao seu texto”

Por Marisa Loures

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Em “Patagônia Babilônia”, João Peçanha institui um diálogo entre a cidade e a periferia por meio da história de um jovem morador do Morro da Babilônia e um idoso cego – Foto Divulgação

Cheguei ao auditório da Faculdade de Letras da UFJF e ocorria a primeira edição de 2019 do “Encontros com a literatura”, atividade que faz parte da Oficina de Estudos Literários. Os alunos sabatinavam João Peçanha, autor de Niterói, radicado em Juiz de Fora. O assunto era “Patagônia Babilônia” (PVB Editorial, 208 páginas), seu mais recente lançamento. Eu ainda não tinha o livro em mãos. Apenas acompanhava o bate-papo, com mediação do professor Alexandre Faria, quando uma aluna da graduação me garantiu que era uma obra para ser lida de um “jato só”.  Resolvi, já no dia seguinte, começar a leitura do romance, e confirmou-se o que ela havia me dito. Só consegui fechar o livro ao chegar ao último ponto-final.

Na orelha da publicação, André Vianco também alerta que “João Peçanha tem tudo o que é preciso para enredar o leitor. Em ‘Patagônia Babilônia’, o autor carrega o leitor com sensibilidade e exibe um desfile de boas escolhas para dentro de dois mundos antipodais, mas que se fundem em um”. Joelsson é um garoto pobre da periferia. Ele mora no Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro. Por ter cometido um crime, por determinação da justiça, é condenado à pena alternativa de acompanhar idosos em um asilo público e acaba conhecendo Ernesto, um idoso cego. Este, por sua vez, “já teve quase tudo. Quase. Amou e abandonou na mesma proporção.” Guarda a tristeza de não ter conhecido a Patagônia.

Enquanto acompanhamos a conversa dos dois, acreditamos em tudo o que os personagens nos contam. Sentimos pena e raiva deles ao mesmo tempo. Quando achamos que estamos perto de descobrir toda a verdade, uma novidade. No final, uma reviravolta surpreendente. João Peçanha é um exímio contador de histórias, e aí está o segredo de “Patagônia Babilônia”.

“Antes de tudo eu acredito que, como bichos fabuladores que somos, adoramos escutar ou ler uma história. Mas essa história tem que nos dar algo em troca. Afinal, quando você entra em uma livraria e quer comprar um bom romance, o que você busca? Você busca um olhar sobre o mundo – um olhar que modifique o olhar que você mesmo já tem a respeito do que te rodeia. Se o livro não te traz esse novo olhar logo nas primeiríssimas páginas, você o abandona, e a história não cumpre o seu papel de fabular. Além de escritor, sou professor e, por vezes, com os alunos conversando em sala, eu lanço mão de meu status de fabulador e digo: “agora eu quero contar uma história pra vocês” – e imediatamente eles fazem silêncio para escutar. Logo, escrever, contar histórias, é seduzir, é quase escravizar o leitor ao seu texto, obrigando-o às vezes a roubar algumas horas do seu sono para continuar ali, mergulhado na história que você escreveu”, ressalta o também autor de “Os cadernos de Matumaini: Salila”, “As cartas secretas”, “Cantata para dezesseis vozes e orquestra”, “Satie manda lembranças” e a peça “O pacote”.

Marisa Loures – André Vianco, acertadamente, diz que “João Peçanha tem tudo o que é preciso para enredar o leitor”. Como você cria?As histórias dos seus personagens já têm desfecho quando começa um livro? Aquele final surpreendente de “Patagônia Babilônia” já existia?

João Peçanha – O processo criativo é um negócio muito misterioso mesmo. Há escritores que pegam uma ideia quase fetal e começam a escrever. Há outros que gostam de planejar tudo antes de começar um novo livro. Veja, há vantagens e desvantagens em cada tipo, mas eu me enquadro no segundo. Ou seja, gosto de planejar o máximo possível o que acontecerá na narrativa, do primeiro ao último capítulo, mesmo sabendo que esse planejamento não é imutável. Só depois de ter tudo planejado (o termo é “escaletado”, na “língua” dos escritores) é que me lanço à escrita. Houve um livro, o “Cadernos de Matumaini”, que levei um ano e cinco meses pesquisando, fazendo anotações e organizando os plots e os capítulos, sem ter escrito uma linha sequer da história. Portanto, sou bastante organizado nisso.Em geral, em primeiro lugar, há a proposta do livro, do tipo “quero escrever uma ficção científica que se passa em um campo de refugiados do futuro”, “quero escrever a história da amizade de um velho cego e de um menor infrator”, “quero escrever a história de um negro escravo que se transforma no melhor amigo de Pedro II e torna-se essencial para um monte de coisas que aconteceram na história do Brasil” (são as premissas básicas de três dos meus livros). A partir disso, eu pesquiso, encontro um personagem principal, suas motivações, e vou construindo os personagens à volta dele, de forma que aquelas motivações sejam trabalhadas na história.Com relação ao final de “Patagônia Babilônia”: não, ele não estava no planejamento inicial da história. O final foi alterado umas quinze páginas antes de eu ter concluído o livro, o que derivou em duas coisas: a primeira é que eu tive que voltar em vários pontos do livro e acertar pontas que ficariam soltas; a segunda é que nenhum leitor até hoje conseguiu descobrir o plot twist (a reviravolta que acontece na trama) do final.

– E, quando escreve, você pensa e planeja que tipo de reflexões e diálogos quer criar e possibilitar ao leitor?

Eu sempre parto de uma proposta inicial. A coisa não é assim tão pensada, mas é claro que eu penso, por exemplo, que numa história com uma mulher que terá que escolher qual dos seus filhos será salvo, a questão da mulher na sociedade atual deverá ser tratada pelo menos pela tangente. Veja, não gosto de livros panfletários, que fazem política tão explicitamente, mas a literatura, por estar no mundo, é política, mesmo sem querer. Então, os diálogos entre a trama e o mundo são tão necessários quanto inevitáveis. Quero que o meu leitor se divirta, mas é claro que gosto de vê-lo se questionando e questionando o mundo onde vive.

– Abandono, problemas entre pai e filho, HIV, drogas, suicídio, mal de Alzheimer, venda de armas, milícias, entre outros assuntos, transitam pela sua obra. Quando começou a escrita do livro propriamente dita, todos esses temas já existiam e estavam bem costurados na sua cabeça?

Na verdade, esses temas moram no que a gente pode chamar de “campo semântico” de cada personagem. Então, para um personagem como o Joelsson, que é um menor infrator, orador de uma comunidade, os assuntos “violência”, “milícias” e “tráfico”, por exemplo, são incontornáveis. O mesmo acontece com Ernesto: ele é idoso e cego, portanto não seria estranho tratarmos de Alzheimer e de conflitos entre filhos e pais. Na verdade, os assuntos vêm junto com o “pacote” dos personagens mais importantes do enredo.

– Achei superinteressante o livro tocar no assunto “armas” num momento em que a discussão sobre o porte de armas está muito acirrada no Brasil. Na sua história, o negócio de venda de armas foi rentável para Jorge e Ernesto durante um bom tempo. Depois, começou adeclinar quando o país deixou para trás o período em que os militares estavam no poder. Você imaginava que, na vida real, pouco tempo depois do lançamento do livro, o Brasil poderia se tornar, novamente, um ótimo mercado para os personagens da sua história?

Por mais que não desejemos ver isso, as armas sempre fizeram parte da vida em nosso país. Seja no meio rural, onde não é incomum o porte, por conta de conflitos de terras, seja nas cidades, onde a violência tem atingido níveis alarmantes – e tudo isso misturado à crescente incompetência de nossas polícias (veja: não culpo os policiais, mas as polícias enquanto estruturas de poder) para prover a população com aquilo que devia ‒ a segurança. Não somos mais aquele país de “gente boa e tranquila”, como anunciado por alguns estudiosos da primeira metade do século passado. Não. Somos violentos. Um dos países mais violentos do planeta. E eu acho que sempre fomos assim. Do século XIV ao XIX, usamos armas de fogo, armas biológicas na Guerra do Paraguai e, contra os nossos negros escravizados, a chibata ‒ uma arma aparentemente menos danosa que as de fogo, mas que, perfurando a pele, atinge a alma. No século XX, usamos quantidades e variedades impressionantes de armas, desde as mesmas de fogo até alguns instrumentos de tortura herdados de sociedades conhecidas por serem expoentes naquele tipo de convencimento contra a vontade do convencido. De qualquer forma, as armas sempre foram bastante comuns entre nós.Hoje vivemos um momento político em que o principal mandatário do Executivo de nossa república é um fiel defensor das armas. Não acredito que isso tornará meu país melhor ou mais justo, pelo contrário. Mas a maioria da população, bem ou mal, ano passado, optou por isso. O problema é que o caminho do armamento de uma população é como os poderes sobrenaturais dos super-heróis: junto com eles vem a responsabilidade. Tudo tem seu preço. O problema é que, do jeito que está sendo conduzida essa questão das armas, a parte da responsabilidade está sendo esquecida, em prol da reafirmação de uma lengalenga de campanha política que se estende até hoje nas atitudes do governo eleito. Temo por isso. Temo muito.

– O velho Ernesto, um dos personagens do seu livro, conta ao menino que nasceu em uma fazenda, mas que, quando tinha 7 anos, mudou-se com os pais para Niterói. Sabendo que você é de lá, meu primeiro impulso foi pensar que “Patagônia Babilônia” é inspirada em fatos reais. Ele tem algo de biográfico?

Quase nada, embora cada personagem que eu crio tenha algo de impressões que eu recolhi de minha vida. Isso não toca o autobiográfico, mas o experiencial. Ou seja, não se trata da minha vida, mas de experiências que eu vivi ou que testemunhei, entende?Mais uma coisa: não faço “literatura confessional”, que sirva como um desabafo para o autor. Não acho que funcione para mim. Literatura tem que ter, sim, uma proximidade com o real, mas as coisas devem ficar assim, apartadas, para que o pacto do autor com o leitor se cumpra e a “quarta parede” da narrativa funcione.

– Na sua narrativa, Joelsson mora na Babilônia, é negro, pobre e acaba se envolvendo com o crime.  Ele mesmo pensa, que “quem mora ali tem um tipo de marca, uma coisa que diz aos outros: sou favelado, sou pobre e, quase certo, como moro em favela, sou bandido.” O velho, sem enxergar, diz que ele “deve ser negro e ter uma mãe doméstica.” A intenção ali era criar mesmo esse estereótipo para, no final, mostrar que isso não passa de um preconceito da nossa sociedade, já que Joelsson construiu para ele um futuro diferente do que se imagina?

Sim. Eu queria que Ernesto fosse odiado pelo leitor no início da história. Na verdade, há vários pontos na biografia de Ernesto que dariam caldo para um ódio contra ele: o preconceito, a falta de amor, o desprezo pelos que o amam. Quanto mais distante os dois fossem no início, mais potente seria o efeito da aproximação deles dois, ao longo da história. Foi uma amizade difícil de costurar por isso: Ernesto e Joelsson viviam em universos diferentes, opostos. Também gosto de expor o preconceito. Ele precisa ser absolutamente esclarecido, sem névoas ou meias palavras, para que não restem dúvidas. Declare o seu preconceito, se o tiver, e pague o preço por ele junto à Justiça.

– Ernesto confessa que só tinha olhos para ganhar dinheiro, e as artimanhas que ele criava para isso “poderiam até prescindir um pouco da ética”, como ele mesmo diz. Antes disso, o leitor conhece a história que Ernesto relata sobre sua família. O pai perdeu a fazenda, gastava muito e deixou a mulher e o filho numa situação difícil, sem dinheiro. Parece-me que o velho constrói uma narrativa que justifica os erros que nós acreditamos que ele cometeu. É isso mesmo?

Eu precisava mostrar Ernesto como ele era, ou seja, um sujeito sem ética e pouco afetivo em suas relações. Mas ao mesmo tempo eu precisava fazer com que o leitor se identificasse de alguma forma com ele, e Aristóteles já ensinou que a gente só se intimiza com um personagem se sente por ele uma dessas duas coisas: terror ou piedade. Então, meu leitor precisava sentir pena de Ernesto, ou temer por ele. Além disso, ninguém é, por exemplo, egoísta por nada. Sempre há algo que construa a personalidade de um egoísta ou de um medroso. Se eu vivo com medo de tudo e de todos, pode ser que meus pais tenham me criado sempre sob o crivo do medo: não faça isso ou vai se machucar, não saia na rua à noite, pois podem ter bandidos, sequestradores, traficantes etc. Se eu não consigo tomar decisões, talvez eu tenha tido pessoas à minha volta que tivessem me “ensinado” a não tomar decisões. As justificativas para Ernesto não são perdões, só justificativas para a sua personalidade.

– Ainda sobre os erros, Ernesto nos faz acreditar que foi um péssimo pai. Nunca ligou para o filho. Na outra ponta, o jovem Joelsson também confessa que nunca teve a presença paterna. Por isso, chego a ver o encontro dos dois como uma oportunidade que eles tiveram de acertar as contas com o passado…

Ambos, Ernesto e Joelsson, devem aprender a perdoar. Ernesto deve perdoar a si mesmo, e Joelsson deve perdoar seu pai. O caminho do perdão dos dois passa pela figura do pai, importantíssima para ambos. Ernesto criou a sua premissa de vida: jamais deixar que os seus passassem as dificuldades por que ele passou, por conta das maluquices do pai. Já o pai de Joelsson criou a fábula do abandono: ele não confia em ninguém e não se permite a afetos mais profundos. E é Jofre, seu irmão, que abre as portas dos afetos de Joelsson e lhe permite viver sua fatia de perdões.

– Durante o encontro com os alunos da faculdade de letras da UFJF, você teve a oportunidade de estar perto de estudantes que já haviam lido sua obra. Como é, para o autor, a experiência de ter o retorno das leituras do público? Sempre surge uma novidade?

Sempre. A leitura atenta é sempre surpreendente, e te leva para lugares improváveis e não pensados no momento da escrita. O diálogo com o leitor, para um escritor, é sempre proveitoso, e o retorno é maravilhoso. Mesmo quando o leitor confessa não ter gostado muito do seu livro: ali há um grande carinho do leitor para com minha obra, porque ele perdeu um tempo precioso na sua leitura, e outro também precioso entrando em contato para dar seu feedback. Isso é esplêndido! Tive um prazer imenso no encontro com os leitores, na UFJF, não só porque tive contato com leitores, mas porque ali havia leitores graduandos da faculdade de Letras, o que elevou o nível das perguntas e exigiu muito mais de mim, enquanto autor. Não tenho como agradecer o convite feito pelo professor Alexandre Faria, que me permitiu mais esse contato com os leitores.

Capa Patagônia Babilônia EBOOK 2

“Patagônia Babilônia”

Autor: João Peçanha

PVB Editorial, 208 páginas

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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