Amor de carnaval
Era um daqueles carnavais em que ela saiu de casa com o uniforme da multidão, algum – muito- glitter na cara, uns arcos descoladões na cabeça, tênis, pouca roupa. “Conforto acima de tudo, diversão acima de todos”, pensava, já arquitetando alguma desculpa para cair fora se o bloco não estivesse bom, mas também permitindo-se uma autoindulgência caso o clima estivesse bacana. Passou por amigos e amigas que não encontrava há tempos, e distribuía um pouco de purpurina a cada abraço mezzo brilhoso, mezzo suado: “vamos beber, que amar tá difícil”, brincava, emendando, “e ser brasileira também!”, e brindava entre pessoas queridas, ora com um latão de cerveja, ora com um desses chup-chups feitos sei lá com que álcool, e pensava no quanto era bom o carnaval ser uma pausa das agruras da vida do país e a que habitava seu corpo e seu dois-quartos, enquanto gastava o tênis nas calçadas tão sambadas quanto as marchinhas que a banda tocava. Estava feliz, e não só alegre – tanto de álcool quanto de contentamento.
Como acontece nos quatro dias de exceção do cotidiano, distribuiu uns beijos entre um refrão e outro, entre um latão e outro, entre um grito de ordem e outro, afinal “carnaval também é resistência”, pensava. E era mesmo. Física e política – embora às vezes se sentisse sem forças para ambas. Cumpriu o pré-requisito de existir como mulher no mundo: desviou de puxões de braço, cabelo, de mãos não convidadas ao toque e de tentativas de beijo não consentidas ou solicitadas. Ouviu desaforos por isso, claro: “também você é feia”, “eu ia fazer caridade”, “gorda”, “piranha” e variações clichês vindas de boquinhas criadas a leite e pera, cheinhas de privilégios que jamais admitirão. Mas pouco importava, como a moça que “desatinou”, na famosa canção, “ela ainda está sambando”. E há de continuar. Já havia encontrado o amor de carnaval por que passara a vida esperando, e que havia subido a serra faz tempo: bastava portar-se diante do espelho e lá estava, o amor mais batalhado, mas mais libertador. E desde então, ainda que com medo, ainda que nem sempre feliz, ainda que nem sempre completamente segura, ela é diariamente a rainha de sua própria Avenida. No carnaval e no ano todo. Ô, abre alas, que ela está passando – nós todas.