Por que o natural vira extraordinário?


Por Cristina Castro, Professora, integrante da Diretoria Plena da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino, da coordenação executiva do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e conselheira do Conselho Nacional dos Direitos Humanos

03/02/2019 às 07h00

Seria natural que, assim como a comandante Karla Lessa, a pilota de helicóptero que resgatou pessoas da lama em Brumadinho, outras tantas mulheres exercessem a profissão. No entanto, sua ação – de fato fabulosa – ganhou todo o destaque por ela ser mulher. Pilotar helicóptero já seria o máximo para uma mulher… E ainda fazer manobras?! Sendo mulher?!

Recordo-me de quando fui fazer uma vaga na Rua Braz Bernardino, próximo a um bar que tinha, por hábito, muitos homens na calçada. Era uma vaga pequena e, ao perceberem que era uma mulher ao volante, começaram os comentários: “será que consegue?”, “vai ter que manobrar muito”, “aqui ela não para”, “não vai conseguir entrar”, e tantas outras “dicas” que nós, mulheres, já ouvimos no trânsito e que muitas vezes reproduzimos: tinha que ser mulher. Mas estacionei na primeira manobra. Ao descer, alguns me aplaudiram e, acompanhando os aplausos, a expressão: “Dirige feito homem essa loura”. Tranquilamente respondi: “Vocês, desde o nascimento, ganham carrinhos, tratores, motociclos e nós ganhamos bonecas, panelinhas… Seria natural que dirigir, para a gente, fosse mais difícil, né?”. Porque, além de aprender a dirigir, temos que superar o que nos é imposto desde o nascimento: tem coisa de homem e coisa de mulher.

Mas voltemos à comandante Karla. O mais “fantástico” nisso tudo é ver as homenagens prestadas a ela por mulheres que acreditam que o feminismo é “mimimi”, que estão nas redes sociais prestando um desserviço à história de luta das mulheres. Porque foi com luta que asseguramos o direito ao voto, o direito ao estudo, o direito ao trabalho, o direito às garantias trabalhistas e a tantas outras conquistas. Se nossa luta é “mimimi”, o que tem de extraordinário na atuação da comandante que mereça homenagem?

Nossa luta é justamente pela superação da discriminação de oportunidades. Nossa luta é justamente para romper com conceitos estabelecidos e que impõem, desde o nascimento, os padrões que meninos e meninas devem ter, como sentar, falar, agir, chorar, brincar e viver. Padrões que impõem cores rosa e azul, por exemplo, e que naturalmente são utilizados sem uma análise sobre o que de fato isso representa. Por que meninos usam azul e meninas, rosa? Azul representa imensidão, a grandeza, o mar, o céu. Rosa, a fragilidade da flor que se despetala, que precisa ser “cuidada”. Daí é mesmo difícil para uma rosinha pilotar um helicóptero.

A tal propagandeada “ideologia de gênero”, que não existe enquanto ideologia, mas, sim, enquanto luta e busca de oportunidades iguais, significa romper com esses padrões. Não se trata de menina virar menino, ou vice-versa. A comandante Karla não se tornou homem pelo fato de exercer uma profissão tida até então como masculina.

A lei assegura igualdade de direitos, mas a vida, os padrões, os costumes, as regras preestabelecidas não asseguram oportunidades iguais. Essa tem sido a principal luta das feministas, porque é desses pré-conceitos que nasce a violência.
Certamente, a comandante Karla salvou mais vidas do que aquelas da lama de Brumadinho. Salvou da lama machista que ainda ofende, humilha, bate e mata. Toda a nossa admiração e o nosso agradecimento à comandante Karla, por superar barreiras e nos ensinar que é possível voar. E que o azul do céu pertence também às mulheres.

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