À espera de um sonho bom: a história da venezuelana Aura
A esperança da venezuelana que há menos de cinco meses chegou a Juiz de Fora, para morar com um primo e outros quatro conterrâneos, deixando para trás a casa e os cinco filhos
Um a um, Aura abraçou e beijou os cinco filhos. Não chorou. Firme, disse-lhes que tudo ficaria bem. As crianças choraram. Aura não chorou. Firme, pediu que eles confiassem nela. Um dos meninos pediu para cantar: “Deixe-me roubar um beijo que chegue à alma, como um vallenato (gênero musical) daqueles antigos que gostamos. Eu sei que você sente borboletas, eu também senti suas asas. Deixe-me roubar um beijo pelo qual você se apaixona e não vai mais”. A voz do pequeno embargou e ele não deu conta de continuar. Ela não chorou. Firme, limpou todos os olhinhos. “Quando eles se acalmaram, fui embora. E chorei durante toda a viagem”, recorda-se a mulher de 32 anos, que no dia 19 de agosto deixou para trás sua família, sua casa e seu país. Aos soluços seguiu por cerca de 20 horas em um ônibus que fez o percurso entre a natal Valência, uma das maiores cidades venezuelanas, e Pacaraima, em Roraima, de onde embarcou mais uma vez rumo a Boa Vista. Era domingo e a fronteira dos países vivia o caos após um comerciante local ser assaltado. Da janela do veículo onde estava, Aura via barricadas, homens armados e uma tensão que tomava conta de todos os passageiros. Ela chorava.
A bordo de um avião, com a passagem paga por uma tia dos filhos, viajou por seis horas até chegar ao Rio de Janeiro, onde entrou em um ônibus e seguiu até Juiz de Fora. “Eu não sabia nada de português. Com os dias fui perceber: Oh! Deus! Fui longe! Deixei meus filhos, minha mãe. Foi como um sonho ruim”, diz, emocionada, Aura Yulexis Hernandez Fonseca. “Meus filhos ficaram bem, sentem saudades como eu sinto saudades deles, mas a situação da Venezuela me obriga a estar aqui e eles lá. Se eu estivesse lá não teria como dar comida para eles, nada”, lamenta ela, que, como a mãe, trabalhava como vendedora autônoma, em casa e na rua. “Vendia donuts, Avon, uma marca parecida com a Natura, comidas como a arepa, que é tradicional na Venezuela (massa recheada). A cachapa, feita de milho verde moído e recheada com queijo ou porco, eu também vendia. Era boa a vida, tranquila, igual ou parecida com aqui, com oportunidades para avançar, para o futuro. Depois ficou muito ruim. Eu tinha que trabalhar um mês para comprar um quilo de cebola”, conta.
No semáforo do cruzamento da Avenida Rio Branco com a Avenida Brasil, Aura vende donuts e água. Uma vez por semana faz faxina. Aos domingos vende roupas na feira da Avenida Brasil. E nesta semana começa a trabalhar, dia sim, dia não, em uma padaria, como auxiliar do setor de confeitaria. A cidade, segundo ela, permite projetos. O seu, no entanto, existe antes mesmo de pisar no Brasil. “Meu projeto é ficar com meus filhos, aqui ou lá.” Enquanto conversa, fala mais em voltar. “Lá está minha casa, tem meus filhos, meus pais, meus avós, meus irmãos, toda a família. Trazer meus filhos seria bom, mostrar outra cultura, mas todo imigrante tem fé de que a Venezuela vai voltar para melhor”, diz ela, que todos os dias convive com a dor da distância. “Tive que me acostumar. As pessoas daqui de Juiz de Fora são boas. Tem muitas pessoas maravilhosas. Gosto muito daqui. Estava pensando, Juiz de Fora deve ser a melhor cidade do Brasil. É?”
Casa é igual em português e espanhol
“Eu olhava os carnavais do Rio pela TV e achava muito bom. Pensava: algum dia vou lá! Mas nunca pensei que seria assim, dessa maneira. Ninguém quer ir embora por obrigação. Todo mundo quer ir para um outro país e ficar bem, sem sentir saudades, tendo como voltar”, diz Aura, que mudou-se para Juiz de Fora a convite do primo, Franklyn Ruiz, um professor de educação física de 35 anos que em Juiz de Fora empregou-se como ajudante de eletricista. Da Venezuela, onde deixou uma filha pequena, ele partiu com o amigo Adolfo Davila, 27, autônomo em sua terra natal e ajudante de cozinha no Brasil. Adolfo, por sua vez, convidou as irmãs Angela Davila, 29, enfermeira que hoje atua como faxineira, e Leidy Davila, 37, que de camareira passou a cozinheira. Para trás, Leidy deixou seis filhos. O mais velho, Angel, foi o único a se mudar com a mãe e trabalha como ajudante de cozinha em um café da cidade. “Não é fácil. Quatro ficaram com minha mãe e minha outra filha, com uma neta, ficaram cuidando da minha casa. Eu transfiro dinheiro para minha mãe e minha filha e pago aluguel. É tudo muito apertado”, pontua a mulher. Os seis vivem em um apartamento na Avenida Rio Branco, próximo ao cruzamento onde Aura trabalha. Juntos, se acalentam e se aquecem. “Dentro da gente fica a saudade de falar espanhol. Quando chegamos em casa, cansados, com saudades da família, não dá para ligar a TV e ouvir o português”, afirma Aura. Amigos, fez algum? “Tem uma senhora que faço faxina para ela toda semana. Ela não fala muito, mas sinto por ela muito carinho”, responde a mulher, citando, ainda, o Padre Luiz Eduardo, da Pastoral dos Migrantes, que passou o Natal com eles e outros quatro venezuelanos. “Cozinhei para compartilhar com os amigos, mas não queria, porque na Venezuela eu cozinhava para meus filhos, por isso, esse foi o fim de ano mais sem sabor de minha vida”, comenta. Leidy mostra no celular a foto da mesa posta, com frango assado, arroz temperado, arroz branco, lombo recheado e maionese. Na Venezuela suas famílias não tiveram a mesma sorte. Atualmente, R$ 1 equivale a mais de 200 bolívares soberanos, moeda venezuelana. Para comprar um quilo de arroz, conta Aura, é necessário cerca de 4 mil bolívares. Mesmo recebendo o dinheiro enviado por Aura, seus filhos e sua mãe não comem carne, ovos ou queijo. “Comem só feijão e arroz.”
Coragem é o mesmo em português e espanhol
Quando Aura chegou ao apartamento que dividiria com o primo Franklyn e outras quatro pessoas logo se apaixonou por Adolfo, um homem alto e de olhos claros, que carrega consigo o otimismo em falta na casa. “Se ficarmos chorando não fazemos mais. Temos que seguir trabalhando. Mas sempre sai uma lágrima e é preciso ser forte. Vai chegar um dia em que nosso país irá melhorar e nós voltaremos. A esperança é a última que se perde. Não tem como ficar aqui tristonho. O que não te mata te faz mais forte”, diz ele, sensato e centrado. “A maioria de nós imigra pela necessidade. Aí acho que tem que ter coragem. Muitas pessoas sonham em sair de sua cidade para ter uma virada na vida, mas planejam. Pela situação da Venezuela não podemos planejar. Não existia outra maneira de permanecer lá”, comenta ele, que junto de Franklyn chegou a Juiz de Fora para viver na Casa Benjamin, no Dom Bosco, acolhidos pela ABAN – Associação dos Amigos. Em dois meses, já empregados, alugaram o apartamento e convidaram os familiares. “Quando você é uma pessoa responsável, honesta e tem valores, não tem o que perder. Sabe quem você é e para onde vai”, diz, sem se aborrecer com o preconceito. “Em todos os lados tem pessoas ignorantes. Aqui em Juiz de Fora vejo muita gente olhando para o imigrante de maneira normal. Sabem que estamos saindo de uma crise e procurando uma vida melhor. Sabem que estamos melhorando e nos apoiam. Eles olham a vontade que temos. Falam que somos lutadores. Aqui tem muitas pessoas boas, educadas. Em outros estados a coisa varia. Mas o venezuelano, pela situação que está lá, não leva muito em conta o preconceito. Olhamos para a frente e damos um sorriso. Tem gente que tem tudo, carro, casa, família, mas são frios de coração e não têm felicidade. Porque a felicidade não se compra com dinheiro, com carro. A felicidade se compra com o que você sente, com o que você é, com o que você vale, com o que você transmite, com o amor e com o carisma”, diz ele, que de todos os desafios, encara a linguagem como um dos maiores. “Todos os dias aprendemos algo novo de alguém”, pontua. Ainda, que em espanhol é todavía, foi um dos aprendizados que garantiu gargalhadas, conta Aura.
Fé acentua em português e não em espanhol
Na casa da mãe de Aura, onde vivem seus filhos, não há telefone. Então, quando se falam, combinam um dia para a próxima ligação. Filha de um padeiro e de uma ambulante, Aura e seus três irmãos conheciam a escassez, mas não a aridez. Um de seus irmãos recentemente pediu demissão do emprego de motorista para vender café nas ruas de Valência. O salário mínimo não era o bastante. A crise, segundo Aura e seus cinco companheiros de casa, só muda quando mudar o presidente, empossado mais uma vez na última quinta-feira, 10. E também quando mudarem os venezuelanos, destaca Adolfo: “O mais essencial é mudar a mentalidade das pessoas. O valor de um país está na educação da população, nos valores como honestidade e sinceridade.” Enquanto isso não acontece, Aura segue firme. Há dias em que deseja ir embora. E planeja juntar o dinheiro da passagem e partir. Mas se lembra da vida difícil, da miséria, e se veste de força. “Tenho muito desejo, mas se penso que vou trazer meus filhos, com um salário mínimo e pagando aluguel, vai ser como é lá. Estou esperando que as coisas melhorem. O dia em que saí da minha casa, pedi a Deus, que me ajudasse. Deus aqui no Brasil e lá na Venezuela é o mesmo”, pontua a mulher, que concluiu o ensino médio e não mais estudou. Aprende com a dor. “Creio que mudou minha maneira de valorizar mais o que tenho. Quando temos alguma coisa, temos que valorizar mais e tratar com que dure mais tempo. Se é bom, que seja mais duradouro e verdadeiro”, diz ela, que vez ou outra chora. E todos os dias se lembra do filho cantando: “Deixe-me roubar um beijo que chegue à alma, como um vallenato (gênero musical) daqueles antigos que gostamos. Eu sei que você sente borboletas, eu também senti suas asas. Deixe-me roubar um beijo pelo qual você se apaixona e não vai mais”.