Luzia está no consultório médico. É professora. Recebe o diagnóstico de que é vítima de uma doença degenerativa que pode levar à perda total da visão. O oftalmologista não faz rodeios, dá a notícia de supetão. O diálogo inicial da protagonista de “Livros na estante” (56 páginas) com o médico chega até a ser engraçado. A paciente consegue fazer piada diante da difícil situação. No entanto, aos poucos, ela vai se deparando com a nova realidade. Desenham-se diante dela desafios a ser enfrentados. “Eu vou é ficar cega. E agora quem vai cuidar da minha filha? Como vou trabalhar? Não vou poder mais pintar, ler… O que vai me restar?”.
Há momentos de muita força e vontade de lutar. “Eu não tô nem aí/ pra essa tal de resignação/ Eu não sou resignada/ Eu resigno-nada”, diz, em versos, a personagem. E episódios de muita dor. Difícil para ela, que sempre teve apego aos livros, pensar na possibilidade de manter-se distante deles. Dessa forma, busca familiarizar-se com os aparatos tecnológicos capazes de aumentar a acessibilidade de pessoas com baixa visão ou cegas. A poesia é o motivo de sua existência.
“A escrita do livro teve início na sala de espera do oftalmologista, enquanto eu vivenciava o doloroso processo de comprometimento da área central do meu olho esquerdo. Comecei a imaginar um diálogo cômico entre a paciente e o médico – uma forma de reduzir o peso da situação, afinal eu não era a única a enfrentar tamanho desafio”, conta a escritora Luciane Fontes que, há 13 anos, foi diagnosticada com uma doença genética rara e irreversível (pseudoxantoma elástico) que afetou sua visão.
“Inicialmente, pensava num filme, um curta, porque eu imaginava as cenas e, em seguida, os diálogos. Muitos anos depois, quando meu olho direito começou a apresentar problemas, retomei meus escritos e resolvi dar continuidade e transformá-lo em livro”, completa ela, também autora de “Quereres (2006), “Psicanálise versada” (2017) e “Paixões do ser” (2017).
Luciane é atuante na cena literária da cidade (é membro da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora), é psicóloga com pós-graduação em psicanálise e mestre em psicologia/psicanálise pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. E, claro, é poeta.
Marisa Loures – Sentia que faltava informação sobre o assunto?
Luciane Fontes – O ponto de partida foi a necessidade de elaborar e dar um sentido para o que eu estava vivendo, pois a arte oferece sempre um contorno criativo ao vazio existencial, às angústias e aos enfrentamentos demasiadamente humanos. O escritor também é capaz de tocar os dramas existenciais do leitor e estabelecer com ele um elo de afinidade e identificação. Nesse momento, o drama pessoal deixa de ser pessoal e torna-se um drama compartilhado por todo ser vivente. Além disso, ao longo desse processo, percebi que as dificuldades enfrentadas por pessoas cegas ou com baixa visão ficam restritas ao ambiente familiar, pois se percebe que grande parte das pessoas ignora o conceito de acessibilidade e o que ele significa na prática. Ao deparar-se com uma pessoa cega num semáforo, não sabem o que fazer e como ajudar. Em geral, infantilizam a abordagem ou falam alto como se, além de cega, a pessoa abordada também fosse surda. Não se vê muitas pessoas cegas circulando nas ruas, mas não é porque o número de pessoas cegas seja baixo e, sim, porque elas encontram muitas barreiras para andarem sozinhas nas ruas. O piso tátil é fundamental para orientar a direção a ser seguida, mas muitas vezes eles são atravessados por postes e orelhões provocando incidentes dolorosos, quando não são interrompidos ao acaso deixando a pessoa sem orientação. Os semáforos sonoros são importantíssimos para que a pessoa cega ou com baixa visão possam atravessar a rua sozinha, mas não temos nenhum na cidade. Portanto, a pessoa que perde a visão precisa não só fazer o luto por tudo o que não poderá mais ter acesso pela visão, mas também precisa adaptar-se à nova realidade, com seus limites e possibilidades. No entanto, o repertório de possibilidades fica extremamente reduzido devido à falta de políticas públicas voltadas para a inclusão de pessoas portadoras de algum tipo de necessidade especial, à falta de investimento de setores privados também e, finalmente, à falta de esclarecimento e sensibilização da população em geral, que reage muitas vezes de forma agressiva e pouco solidária no cotidiano das ruas, nas filas dos bancos, etc.
– E como foi escrever sobre o tema?
– Descobri um universo de pessoas que compartilham das mesmas dificuldades, dos mesmos desafios. Pessoas que escolheram se reinventar e que não desistiram de lutar por seus projetos e sonhos, apesar da pouca política de acessibilidade.
– A presentação da obra leva-nos a refletir sobre as dificuldades enfrentadas pelas pessoas portadoras de deficiência desde a antiguidade. Lá, descobrimos que, nessa época, acreditava-se que os deficientes eram possuídos por maus espíritos ou estavam em processo expiatório por algum pecado. Como o deficiente visual é visto e tratado na contemporaneidade?
– Ainda como um ser estranho, com o qual não se sabe muito bem o que fazer e/ou como fazer. Algumas pessoas ainda vivem exiladas da sociedade por medo de sair pelas ruas sozinhas… Outras optam por cursar uma faculdade à distância pela dificuldade no processo de ir e vir… Atravessar a rua é um é um dos momentos mais angustiantes por que a pessoa não pode simplesmente atravessar por que precisa esperar que alguém lhe aborde e pergunte se precisa de ajuda.
– Luzia, a protagonista da história, recebe o diagnóstico e, a cada novidade que sua nova condição lhe apresenta, ela extravasa através de poesia. Parece-me que os livros, e a poesia em particular, são os responsáveis por trazerem ânimo para aquela professora. É como se eles fossem o motivo de sua existência. Essa é uma das mensagens que o livro quer passar?
– Sim, essa é a forma de Luzia produzir sentido e dar sentido à sua vida. Cada um tem um modo próprio de fazer isso. Alguns desconhecem essas saídas criativas e tendem a afundar-se num vazio muito grande, preenchido, muitas vezes, com antidepressivos, álcool e outras drogas. A arte é sempre libertadora. Para o artista, a arte é quase uma necessidade, um modo de vida, o ar que respira.
“Como toda pessoa que recebe um diagnóstico que inevitavelmente redundará num dano pessoal de forma progressiva ou não, o momento inicial é de dor e tristeza. Aos poucos, a realidade se impõe e só há dois caminhos: a entrega passiva aos danos causados pela doença ou a busca de caminhos alternativos para a ressignificação da própria vida. A segunda opção é de grande aprendizado pessoal, sem dúvida.”
– Em um determinado momento da história, a personagem observa alguns cegos na rua e reflete sobre a cena por meio de um poema que demonstra uma vontade enorme de lutar: “Eu não tô nem aí/ pra essa tal de resignação/ Eu não sou resignada/ Eu resigno-nada.” Em outros momentos, ela está triste. Como sãos os primeiros dias após o diagnóstico?
– Como toda pessoa que recebe um diagnóstico que inevitavelmente redundará num dano pessoal de forma progressiva ou não, o momento inicial é de dor e tristeza. Aos poucos, a realidade se impõe e só há dois caminhos: a entrega passiva aos danos causados pela doença ou a busca de caminhos alternativos para a ressignificação da própria vida. A segunda opção é de grande aprendizado pessoal, sem dúvida. “Estou aprendendo/ com o poeta Manoel de Barros/ a desaprender/ Desaprender a enxergar o mundo/com a decifração retiniana/ que não decifra os mistérios da alma,/ nem os enigmas do desejo./ Desaprender a amar/ buscando a eternidade/ porque o amor, não raro,/ como os objetos e o corpo,/sujeitos à queda e à separação,/é dado à finitude./ Desaprender a buscar a continuidade em ser,/ já que o ser é descontínuo por essência/ e vai se fazendo,/ na errância permanente,/ entre a busca e o encontro./Desaprender a carregar pesos e medidas/ para me lançar na busca do equilíbrio entre cordas./ Desaprender a acumular saberes,/ que não servem para nada,/ para abrir-me a cada nova experiência/ como primeira e única./ Assim, não acumulamos lixos de pensamentos e mágoas,/ nem cultuamos feridas abertas./ Mais difícil que aprender, sem dúvida alguma,/É desaprender./ Desaprender a andar em bando,/ a se ater em detalhes,/ a ter sonhos grandiosos/ e a apreciar a beleza apenas do que nos salta aos olhos./ Desaprender a viver sob a égide de compromissos pré-estabelecidos para recebermos cada novo dia como único e digno de aplausos.”
– As pessoas estão lendo e ouvindo mais a poesia feita pelos autores de Juiz de Fora?
– Sim, mas graças a movimentos de autores de Juiz de Fora. Existem vários, mas faço parte de um deles- LEIAJF. Como grupo, fazemos saraus mensais no Espaço Excalibur, participamos de feiras literárias dentro e fora da cidade e temos um projeto de ação nas escolas (públicas e privadas) com o intuito de incentivar a leitura, descobrir novos talentos e divulgar nosso trabalho.
– O que você conhece e gosta da literatura feita aqui na cidade?
– Temos grandes autores nas mais diversas áreas literárias com reconhecimento e premiação em diversos concursos literários. Temos poetas maravilhosos, com estilo próprio. Não podemos estabelecer comparação, pois não se compara estilo. Temos uma marca própria. Precisamos de maior incentivo financeiro público e (por que não?) privado, para as publicações, e também maior apoio na divulgação do nosso trabalho com criação e promoção de eventos culturais que abarquem a literatura junto às demais formas de expressão artística.
“Livros na estante”
Autora: Luciane Fontes
Funalfa (56 páginas)
Trecho de “Livros na estante”
Por Luciane Fontes
Estou aprendendo
com o poeta Manoel de Barros
a desaprender
Desaprender a enxergar o mundo
com a decifração retiniana
que não decifra os mistérios da alma,
nem os enigmas do desejo.
Desaprender a amar
buscando a eternidade
porque o amor, não raro,
como os objetos e o corpo,
sujeitos à queda e à separação,
é dado à finitude.
Desaprender a buscar a continuidade em ser,
já que o ser é descontínuo por essência
e vai se fazendo,
na errância permanente,
entre a busca e o encontro.
Desaprender a carregar pesos e medidas
para me lançar na busca do equilíbrio entre cordas.
Desaprender a acumular saberes,
que não servem para nada,
para abrir-me a cada nova experiência
como primeira e única
Assim, não acumulamos lixos de pensamentos e mágoas,
nem cultuamos feridas abertas.
Mais difícil que aprender, sem dúvida alguma,
É desaprender.
Desaprender a andar em bando,
a se ater em detalhes,
a ter sonhos grandiosos
e a apreciar a beleza apenas do que nos salta aos olhos.
Desaprender a viver sob a égide de compromissos pré-estabelecidos para recebermos cada novo dia como único e digno de aplausos