Mariana Basílio trata do desenvolvimento do ser humano e do assombramento da morte em “Tríptico vital”

Por Marisa Loures

Mariana Basílio site
Mariana Basílio  lançou “Tríptico vital” na Flip, que este ano homenageou a escritora Hilda Hilst – Foto Divulgação

Mariana Basílio selecionava os poemas que entrariam em “Nepente”, seu primeiro livro, quando fez residência artística na Casa do Sol, refúgio criativo de Hilda Hilst, e onde ela morou até sua morte, no ano de 2004. À época (era outubro de 2014), a jovem escritora de Bauru já se encontrava “em um momento de completa similitude – marmorificada – com a plenitude e intensidade da poética hilstiana”, conta ela que, não por acaso, lançou “Tríptico vital” (Patuá, 164 páginas), dia 28 de julho, na Festa Literária Internacional de Paraty. É à Hilda Hilst, a grande homenageada desta 16ª edição do evento, que Mariana dedica essa nova publicação.

“Traços de uma obscenidade que emana lucidez para o enfrentamento da morte, a busca por uma completude de não estar na natureza, mas ser natureza, fizeram com que os fluxos do meu próprio ser a encontrassem de uma maneira especialíssima. Hilda abordava as cintilâncias do inominável, e é o que eu busco também”, diz Mariana. Composto por um poema longo, dividido em três seções intituladas “Da Existência”, “Da Experiência” e “Da Extensão”, o livro é uma narrativa do desenvolvimento do ser humano e do assombramento da morte em nossas vidas. “O corpo, estendido, me escapa./O nó desfeito desata a implosão/De navegações inteiras./Inspirando mesmo o sepulcro.”, versa a escritora, também autora de “Sombras & Luzes”, tradutora e colaboradora em portais e revistas nacionais e internacionais.

“Tríptico vital” foi contemplado com o ProAC, ação do Governo de São Paulo, e é um dos doze finalistas da Residência Literária do Sesc 2018. Também na Flip, Mariana integrou uma roda de conversa e leitura de poemas de Alejandra Pizarnik.

Marisa Loures – Na orelha do livro, Micheliny Verunschk diz: “E o poema flui como resposta à ruína, contraponto à catástrofe.” Que catástrofe é essa que se apresenta? A poesia surge como única forma de contraponto às nossas catástrofes?
Mariana Basílio – Em um dos trechos da Seção “Da Extensão”, digo que “O que importa mais é como se / Cortou a carne do fogo”. O que está em jogo em toda repressão e representação humana é o medo da vida e da morte. Viver é sentir-se perdido na essência da normalidade, ao mesmo tempo é tentar construir redomas para sobrevivermos. Ernest Becker, em seu livro “A negação da morte”, um dos livros de maior influência para a escrita do Tríptico, dizia que “a morte assombra o humano, que se nega a tecer sua finitude”. Talvez a catástrofe que Micheliny Verunschk cite seja um pouco isso. Acredito que a poesia não seja a única maneira, mas é uma das maneiras que possuímos para não ruirmos de vez.

Você lançou seu livro na Flip, que este ano homenageia Hilda Hilst. Inclusive, você participou do evento, integrando uma roda de conversa e leitura de poemas de AlejandraPizarnik. Como você vê a escolha da Hilda Hilst como homenageada da Flip este ano?
A escolha reflete o atual momento de crescimento de leitores e escritores que cultuam e valorizam a escrita sem igual da imensa e plural Hilda Hilst. Essa escolha reflete também as mudanças que a sociedade também vem apresentando, em torno da reivindicação de mais espaço e equidade para os trabalhos de artistas mulheres, negros, LGBTs, etc. Portanto, recebi a notícia com muita satisfação.

– Além de Hilda Hilst, quais são os outros poetas que te inspiram?
– Meu segundo livro de poesia “Sombras & Luzes”, publicado em 2016, e que será publicado ainda este ano em Portugal, é uma homenagem a uma de minhas maiores influências, o poeta lusitano Herberto Helder. Além da própria Hilda, a quem dedico meu atual trabalho, algumas de minhas maiores inspirações são encontradas nas obras dos seguintes autores: AlejandraPizarnik, Silvina Ocampo, Al Berto, Rui Castro, Sophia de Mello BreynerAndresen, Edna St. Vincent Millay, Conceição Evaristo, Auta de Souza, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Stela do Patrocínio, Orides Fontela, May Swenson, Denise Levertov, Mário de Sá-Carneiro, Gabriela Mistral, Sor Juana Ines de la Cruz, AlfonsinaStorni.

– Percebi sua estreita relação com poetas portugueses. Por que Portugal?
Não sei o porquê. Mas sei os anseios e as conquistas. Aconteceu, e só pode acontecer pela tomada das leituras e suas temáticas em mim. A vida é um mistério, no fim, sempre indecifrável. Talvez seja pela origem de nossa língua, ou sua forma diferenciada em meus ouvidos. Similitude de sensações também. Com a Hilda ocorreu o mesmo, principalmente nos primeiros livros. Ela, inclusive, dizia ter visto Camões em seu banheiro.

“O livro “Tríptico vital” é um projeto diferente de tudo o que já tinha feito. Melancólico, irônico, terno, se transforma em cada nova seção, como é por si nossa própria vida, nossa inevitável morte.”

– Li uma entrevista em que você disse que escreve “desde os 16 anos, sem nunca ter tido ideia ou real desejo de ser uma escritora publicada.” Em 2018, você é uma autora de três livros publicados. Sobre o primeiro, “Nepente”, você disse: “é um livro bem imaturo e travado, não o aprecio hoje mas respeito por ter me levado adiante.” Quem é, hoje, a poeta Mariana Basílio? E como você avalia “Tríptico vital”?
É uma escritora que se desafia. No ano de 2018, por exemplo, finalizei a minha primeira peça de teatro. Nos últimos dois anos iniciei um trabalho aplicado e rigoroso no campo da tradução, principalmente com autoras mulheres. Outra faceta é um romance que idealizei em 2014 e agora estou conseguindo, de etapa em etapa, finalizá-lo, sem nenhuma pressa. Creio que o que eu mais precisava, no final e início das contas, era publicar e aceitar a redenção – pesada – de viver para construir um trabalho que cresça com extrema dedicação e flutuação, ao lado de novos desafios e exercícios literários. O livro “Tríptico vital” é um projeto diferente de tudo o que já tinha feito. Melancólico, irônico, terno, se transforma em cada nova seção, como é por si nossa própria vida, nossa inevitável morte. Estou curiosa sobre a sua recepção.

“Me coloco no meu devido lugar: praticamente nenhum, senão o meu próprio. Sozinha. Não pertenço a nenhum grupo ou movimento. Só sigo e escrevo sobre o cortejo dos dias.”

– Uma das principais marcas da nossa literatura contemporânea é a heterogeneidade, ainda que o termo seja reducionista demais. Como você se vê e se coloca nesse vasto campo da literatura brasileira?
A produção literária contemporânea, seja na ficção ou na poesia, é vastíssima. Há muitos trabalhos de baixa qualidade, mas há também muitos outros de ótima qualidade – com a alegria de serem de diferentes cantos do país. Alguns dos livros que mais gostei de descobrir nos últimos tempos foi “Céus e terra” de Franklin Carvalho. Outro bom exemplo que me recordo agora é “Heroínas negras brasileiras” de Jarid Arraes. Me coloco no meu devido lugar: praticamente nenhum, senão o meu próprio. Sozinha. Não pertenço a nenhum grupo ou movimento. Só sigo e escrevo sobre o cortejo dos dias.

– Você também é tradutora. A habilidade de poeta ajuda em suas traduções?
Uma coisa complementa a outra. Traduzir é, além de outras observacões possíveis, transcrever. Espécie de “traição” necessária para possibilitar a expansão dos horizontes e de nossos prévios conhecimentos.

– É mais difícil fazer uma boa tradução ou um bom poema?
Complexa essa reposta. Me deixou pensativa, mas passou rápido. É mais difícil, sem dúvida, fazer um bom poema. Afinal, traduzir pode ser sinônimo de transcrever, mas o bom daquilo – a verve do autor ou autora traduzido – já existe.

– Estamos acostumados a ver muito sobre o autor, seu estilo, técnica e habilidades. No entanto, dificilmente, vemos algo sobre o tradutor, aquele que teve o trabalho de transpor a obra para outro idioma. Por que o tradutor, nessas horas, acaba sendo deixado de lado?
Talvez seja pela falta de conhecimento do trabalho exato – mais específico – que um tradutor, uma tradutora, executam. Afinal, traduzir não é simplesmente criar sinônimos de uma palavra a outra, retirada da língua de partida, mas compreender sentidos ambíguos, esboçar a intenção correta do autor e autora, da época daquele texto para outra. Além de esquemas, como a poesia de versos fixos, por exemplo, há métrica, rima, entre outros fatores. Se elementos assim fossem realmente conhecidos ou refletidos, o trabalho de traduzir seria muito mais reconhecido.

– Onde seus livros são vendidos?
Meus livros são encontrados nas lojas virtuais das editoras e livrarias. Talvez em sebos também – sempre alguém que desiste ou compartilha algo que já foi seu um dia. Afinal, existimos para o amanhã.

Sala de Leitura – Quinta-feira, 2 de agosto, às 9h40, na Rádio CBN Juiz de Fora (AM 1010)

 

Capa Tríptico

“Tríptico vital”

Autora: Mariana Basílio

Editora: (Patuá, 164 páginas)

 

 

 

 

Trecho de “Tríptico vital” – Seção “Da Extensão” 

Mariana Basílio

[…]

O corpo, estendido, me escapa.

O nó desfeito desata a implosão

De navegações inteiras.

Inspirando mesmo o sepulcro.

 

O corpo, estendido, duro.

Oco como o vasto mundo.

Duro como o feito da fala!

 

Novelo de órgãos entrelaçados.

Mijos escorrendo rios

Fezes ladeando mares

A terra me dá boas-vindas!

 

O corpo, estendido, exausto:

Do incêndio, do canto, do livro

Do sonho, da cruz, da pauta,

Da esperança, do útero, da palma,

Do engano, da espada, do poste,

Da avenida, do quase, do retorno,

Da bandeira, do desastre, da harmonia,

Do crescimento, da fratura, do idioma,

Da farra, do caldo, da flor, da náusea,

Do ranho, da fralda, do espelho, da lástima,

Da casa, do coro, da causa, do logo,

Da fauna, do forro, da foda, do enlace,

Do traste, do homem, da moça, do trauma,

Da lápide, do parente, da mentira, da verdade,

Do pergaminho, do estralo, da caneta,

Do petróleo, do extermínio, da batata,

Da guerra, do gás, do hélio, da droga,

Da fonte, do foco, do esporte, do atropelo,

Da doença, da constância, da ruga, do riso,

Da fada, do morto, da morte, da vida,

Da fuça, do buraco, do cheiro, do calor,

Do frio, do criado, da rebelde, do traidor,

Da fidelidade, da angústia, do duelo,

Da jagunça, do padre, do pastor, da mata,

Do mar, da travessa, da mansão, do barraco,

Da entranha, do estranho, do tormento, da tez,

Da fofoca, do regaço, da fome, da flacidez,

Do cansaço, do temor, da bomba, do batom,

Do velório, do computador, do riso, do pranto,

Do genocídio, do índio, do preto, do branco,

Do amarelo, do roxo, do verme, do náutico,

Da memória, da saudade, da nostalgia,

Do encanto, do troféu, da soberba, da voz,

Do anel, do colar, do sapato, da meia,

Do vestido, da pastilha, do enfeite,

Do amante, do amado, do papel, da palha,

Do cigarro, do embrulho, do presente,

Da savana, da selva, do querubim,

Da passarela, do retrato, da retina,

Do calhamaço, da fia, da creolina,

Do transplante, do encontro, da vaselina,

Do câmbio, do avião, da queda, do voo,

Da parafina, da pipa, da luz, da sombra,

Da auréola, do pum, da folha, do rastro

 

Ah, novelo de órgãos entrelaçados!

Córneas fixas nos algodões enfiados.

Diacho, a terra que caga boas-vindas!

 

O tempo passado é o tempo futuro.

O que poderia ter sido e o que foi

Apontam agora para um só fim:

A terra me dá boas-vindas!

 

O corpo, estendido, escapulindo.

O fio da memória, desabando.

 

Átrio disposto nuclear no

Cutâneo e convexo ânus –

Solidez da Terra sob a terra.

 

Cavoucam os vermes o

Centro das bactérias –

Cavoucam meu nariz!

 

Corpóreos incêndios

Corpóreos pretéritos

 

Sempre presente é o que já passou.

 

O corpo estancado que acaba.

O fio da memória que se alastra.

 

(…)

Tudo morre no seu nome.

Tudo morre no seu tempo.

[…]

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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