Foi no ano de 2015 que a mineira de Guarani, Nara Vidal, começou a conversar, atravĂ©s de seus livros, com os adultos. Seu primeiro tĂtulo para esse pĂșblico foi âLugar comumâ. Depois, veio âA loucura dos outrosâ. O formato de ambos era o conto, uma narrativa breve, mas de forte impacto. âO conto, geralmente, tira a gente do eixo e nos surpreende em um instanteâ, dispara a autora, agora estreando no romance com a publicação de âSorteâ (Moinhos, 100 pĂĄginas), cujo lançamento em sua terra natal estĂĄ programado para dia 23 de junho, Ă s 20h, no Bar da Kiki.
Nessa primeira criação de narrativa mais longa, Nara apresenta o drama de Margareth, Mariava, ciço e ManĂ©. Nela, a sorte Ă© trabalhada como destino. âO tipo de sorte que teve cada personagem ao longo da histĂłria, diferente do termo que usamos usualmente, Ă© a sequĂȘncia de acontecimentos nas vidas dos quatro personagens principais. Eu sempre escutei que a gente constrĂłi a prĂłpria sorte. No entanto, quando tratamos de pessoas que carregam as caracterĂsticas dos personagens, Ă© impossĂvel construir uma boa sorte. O destino deles jĂĄ estava traçado porque eram mulheres, pobres e negrosâ, conta a escritora, radicada na Inglaterra desde 2001.
Logo no inĂcio, a obra prende a atenção pela dedicatĂłria que carrega: âDedico este livro Ă Francisca e Carolina que, feito Mariava, nunca tiveram o direito de dizer nĂŁoâ, escreveu a autora que, antes, aguça a curiosidade do leitor com informaçÔes sobre a descoberta de um cemitĂ©rio clandestino na Irlanda, onde se estima que foram encontrados mais de 800 corpos de bebĂȘs mortos entre 1925 e 1958. Ela tambĂ©m traz um trecho de uma escritura de venda de escravas, nas Minas Gerais, com data de 5 de abril de 1886. Diante de tais dados, jĂĄ dĂĄ para saber que boa parte da ficção de Nara foi inspirada na vida real.
De passagem pelo Brasil para lançamento da nova obra, Nara apresentou o livro na Feira do Livro de Joinville, dia 13 de junho. Dia 21, passa por SĂŁo Paulo. Autora de vĂĄrios tĂtulos infantojuvenis, ela foi duas vezes premiada com o Brazilian Press Awards, em Londres, pelo seu trabalho literĂĄrio.
Marisa Loures – VocĂȘ inicia seu livro trazendo dados de violĂȘncias reais ocorridas na Irlanda e no Brasil. Ali, vemos que muita coisa na sua obra nĂŁo Ă© ficção. O que em âSorteâ foi retirado da vida real?
Nara Vidal – Eu fiz na Inglaterra um trabalho de voluntĂĄria num asilo e lia livros para idosos. Alguns capĂtulos por vez. Numa conversa com uma senhora, soube que era sozinha, nĂŁo por escolha. A senhora irlandesa me contou que tinha tido um filho, mas nunca tinha sido mĂŁe. Foi quando me deparei com a histĂłria de uma daquelas mulheres que, atĂ© entĂŁo, eu sĂł tinha ouvido falar em filmes e livros. Ela uma das âmulheres caĂdasâ que engravidaram solteiras e, de acordo com a igreja catĂłlica, carregavam âvergonhas nas barrigasâ. Elas tiveram seus filhos sequestrados pela igreja e postos para adoção por freiras. Isso aconteceu com frequĂȘncia nas dĂ©cadas de 30, 40, 50. Fiquei muito impactada com aquela histĂłria e comecei a escrever sobre. Enquanto trabalhava nesse livro, estive em Minas e, no meio dos papĂ©is de famĂlia, encontrei alguns documentos de registro de compra e venda de escravos naquela regiĂŁo e que tinham sido passados para o meu pai por um familiar. O abalo, a perturbação diante daquele documento feito de uma letra tĂŁo bonita, carimbo do Reinado, foi indescritĂvel. Carolina e Francisca foram essas duas mulheres vendidas. Uma de vinte e poucos a outra de quarenta e poucos anos. Um documento que regulariza o massacre pelo qual fomos responsĂĄveis. Naquele momento, quis trazer uma outra personagem para o livro e criei um emaranhado onde as vidas das duas se cruzam e, no caso do romance, para sempre. A HistĂłria nos fornece material inesgotĂĄvel para a ficção. Nesse caso, a minha motivação foi fazer de uma ficção algo que possivelmente foi verdade, apesar de silenciado.
– Na histĂłria, vocĂȘ retrata dois âBrasisâ. Como eles se relacionam?
– Eu conhecia a lenda celta sobre Hy-Brasil. Sempre achei interessantĂssima essa histĂłria e me perguntava sobre o nome Brasil. Uma coincidĂȘncia, talvez. A Hy-Brasil Ă© uma ilha mĂtica da costa da Irlanda no Mar do Norte. HĂĄ muitas lendas em torno dela, e uma delas Ă© a de que ela sĂł aparece de 7 em 7 anos, e, por isso, nunca deixarĂĄ de existir. Mas Ă© uma ilha sempre envolta em forte neblina e nunca hĂĄ certeza exata da sua localização. Por isso, muitas tragĂ©dias aconteceram, como embarcaçÔes que se quebraram pela colisĂŁo com a ilha. Os exploradores de Hy-Brasil se seduziam pela ilha da fantasia, como ficou conhecida, porque nela havia muitas esmeraldas. Quem conseguisse esconder o fato de ter explorado a ilha tinha a maldição de ter filhos com olhos âesquisitosâ ou de duas cores. A maldição era por conta de ter escondido esmeraldas, de enriquecer sem dividir. Quando pensamos no nosso Brasil, o Pindorama, temos a mesma lenda aplicada Ă realidade. Um paĂs que nĂŁo faz nada Ă s claras, estĂĄ sempre envolto numa âneblinaâ, na obscuridade, na confusĂŁo, uma terra de mentira, que nĂŁo existe como dizem existir. Uma terra onde quem enriquece nĂŁo compartilha e cujos filhos carregam a âmaldiçãoâ desse egoĂsmo, desse desgoverno. Ă um paĂs corrupto que maltrata suas pessoas amaldiçoando futuros.
“O Brasil me dĂĄ a impressĂŁo de ainda nĂŁo ter entendido o massacre que cometeu com as pessoas que foram forçadas a vir para cĂĄ da Ăfrica. Temos uma responsabilidade histĂłrica com essas pessoas. NĂłs colaboramos de maneira decisiva com sua exclusĂŁo. Como nação, fomos coniventes com todos esses crimes e o mĂnimo que deve ser feito Ă© o reconhecimento desse erro. AtĂ© agora, fracassamos.”
– Seu livro Ă© ambientado no Primeiro Reinado. Qual a importĂąncia desse recorte histĂłrico para a obra?
– Meu pai trabalhou como professor de HistĂłria durante muitos anos. Um dos perĂodos dos quais ele mais gosta Ă© exatamente o Primeiro Reinado. Foi um momento na HistĂłria do Brasil cheio de promessas, mudanças, estrangeiros que aportavam no paĂs, crescimento. Ao mesmo tempo, o paĂs estava em guerra, havia movimentos de protesto contra a coroa. Foi um recorte histĂłrico riquĂssimo. No entanto, ao fazer uso da ficção para contar a HistĂłria, eu proponho uma reflexĂŁo sobre temas que nĂŁo sĂŁo abordados ou profundamente debatidos nos livros de HistĂłria, nas escolas, por exemplo. Talvez a minha intenção tenha sido chamar atenção para o que ficou calado, como os estupros e os sequestros das mulheres que foram arrancadas das suas famĂlias nos paĂses da Ăfrica, as quais os livros se referem como escravas. Ao golpe aplicado pelo governo brasileiro nos imigrantes vindos da Europa que cruzavam o oceano em fuga de condiçÔes deplorĂĄveis, guerra, fome, perseguiçÔes, mas que eram forçados a lutar pelo Brasil em guerra. O tipo de sorte que as principais personagens tiveram na vida foi parecido. O que muda Ă© a maneira com a qual a HistĂłria se importa com cada uma dessas contribuiçÔes. Os imigrantes vindos da Europa ou os ĂĄrabes, sĂrios, japoneses tinham a motivação de um sonho, de um futuro melhor. Seus descendentes falam com orgulho de seus antepassados. Os sequestrados da Ăfrica nĂŁo fizeram a travessia para o Brasil por um sonho no eldorado. Deles foi justamente arrancado o futuro, os sonhos a partir do momento que foram forçados a vir para o Brasil. Foram tirados deles direitos bĂĄsicos, a maioria perdeu suas referĂȘncias, seus descendentes tĂȘm dificuldades em traçar suas origens. Fico impressionada como ainda nos calamos ou nĂŁo nos aprofundamos nesse debate, especialmente dentro das escolas. O Brasil me dĂĄ a impressĂŁo de ainda nĂŁo ter entendido o massacre que cometeu com as pessoas que foram forçadas a vir para cĂĄ da Ăfrica. Temos uma responsabilidade histĂłrica com essas pessoas. NĂłs colaboramos de maneira decisiva com sua exclusĂŁo. Como nação, fomos coniventes com todos esses crimes e o mĂnimo que deve ser feito Ă© o reconhecimento desse erro. AtĂ© agora, fracassamos.
– Este Ă© o seu primeiro trabalho mais longo voltado para o pĂșblico adulto. Era o momento de flertar com outro gĂȘnero?
– AtĂ© aqui eu sĂł tinha publicado, dos meus tĂtulos adultos, contos ou textos bastante breves. Gosto muito de escrever contos pela dinĂąmica entre a brevidade e o profundo impacto. O conto geralmente tira a gente do eixo e nos surpreende em um instante. JĂĄ, no romance, eu tive tempo para deixar meus personagens respirarem. Eles foram criados e foram se transformando muito lentamente. Eu escrevi âSorteâ ao longo de seis anos. O projeto literĂĄrio, inclusive , mudou enquanto eu escrevia. Acho que quando escrevemos um romance ao longo de um perĂodo deve ser porque talvez a histĂłria ainda nĂŁo esteja definida, hĂĄ possibilidades de mudança. Quando comecei âSorteâ, que tinha atĂ© outro tĂtulo, pensei em me concentrar apenas na questĂŁo da opressĂŁo e dos crimes catĂłlicos na Irlanda. Durante a minha pesquisa, me deparei com fatos muito interessantes e pouco falados como os poucos navios irlandeses que aportaram no Brasil no sĂ©culo dezenove. Nunca tinha ouvido falar daquilo e foi a partir dali que toda a trama do romance foi traçada e vislumbrei o final. Naquele momento, percebi que tinha uma histĂłria. O que faltava era sĂł escrevĂȘ-la.
– VocĂȘ Ă© uma brasileira que mora na Europa. Seu romance se passa lĂĄ e aqui. Essa ambientação reflete seu desejo de unir sua origem a terra em que vocĂȘ hoje vive?
– NĂŁo necessariamente. Acho que, com âSorteâ, eu tratei de contar uma histĂłria sem muita referĂȘncia pessoal. De fato, nĂŁo hĂĄ referĂȘncia pessoal nesse sentido mais Ăntimo. Talvez a minha grande ambição com esse livro seja contar uma boa histĂłria, o que Ă© o grande desafio. Ă um romance que, sem dĂșvida, trata de trĂąnsito, de mudança de continente. Eu sou imigrante e essa trajetĂłria me Ă© familiar. Mas muito me interessou colocar um personagem no livro que tenha feito uma travessia forçada, como o que aconteceu com as pessoas que vieram da Ăfrica. Diferente dos imigrantes, eles nĂŁo escolheram vir para o Brasil, eles nĂŁo precisaram sair de suas casas. Eles foram violentados em seus direitos e arrancados de seus futuros. Isso para mim ficou sendo importante posicionar no romance atravĂ©s da Mariava. Ă curioso que o que acaba unindo um ponto ao outro, ou seja, Irlanda a Guarani, Ă© exatamente a mĂĄ sorte das mulheres da histĂłria.
– Chama atenção o fato de âSorteâ explorar a oralidade. Isso estĂĄ ligado Ă sua criação, no interior de Minas Gerais?
– Sem dĂșvida. Eu percebi que o livro, a partir do final, especialmente, assume uma narrativa mais regional. Isso reflete a minha familiaridade com o local, eu acredito. Os personagens chegam a Minas, especificamente Ă s margens do Rio Pomba, e eu sou daquela regiĂŁo. O rio que muda o curso dos personagens sempre foi uma referĂȘncia. Era o maior medo dos pais, seus filhos irem nadar no rio. Exatamente como acontece com ManĂ© e Ciço, que vĂŁo procurar onça na beira do rio e lambari, e, de certa forma, o Rio Pomba os engole pra longe da mĂŁe. Acredito que haja tambĂ©m uma questĂŁo da tradição de saber de histĂłrias cuja origem jĂĄ nĂŁo conseguimos identificar. O ManĂ© e o Ciço representam essa perda de identidade, e, em contrapartida, a posse pela terra que passaram a chamar de sua. O Brasil, com seu recorte de paĂses dentro de um sĂł, traz exatamente essa relação conturbada com origem e a busca de pertencer a um lugar novo. Todos os quatro personagens sofrem com essa adaptação de formas diferentes. AtĂ© os dois âirmĂŁosâ Ciço e ManĂ© que acabam virando os loucos, mendigos do vilarejo, vivem esse conflito. NinguĂ©m sabe de onde vieram e por que sĂŁo irmĂŁos se um Ă© negro e o outro Ă© branco. Ă comum encontrarmos personalidades assim em cidades brasileiras. Em Guarani hĂĄ essas pessoas que estĂŁo sempre nas ruas, que nĂŁo sabem de suas origens, que vivem sozinhas, mas que pertencem Ă cidade, sĂŁo parte dela.
– Morando na Inglaterra, como vocĂȘ faz seus livros circularem? Seu pĂșblico-alvo sĂŁo os brasileiros, ou vocĂȘ conquistou leitores de lĂĄ tambĂ©m?
– Apesar de morar na Inglaterra desde 2001, eu escrevo em portuguĂȘs por escolha. Ă a lĂngua que funciona para mim na hora da criação literĂĄria. Assim, a maior divulgação e circulação do meu trabalho acontece no Brasil. Claro, exatamente por morar fora esse tempo todo, acabo por me aproximar de brasileiros que leem minha literatura e editores e autores ingleses que publicam alguma coisa, especialmente em revistas. Mas eu sinto que o Brasil Ă© onde me faz sentido querer circular o que faço. NĂŁo Ă© uma meta minha publicar fora do Brasil. Acho que, talvez, alguma tradução de algum trabalho meu aconteça, mas eu teria muito mais orgulho em saber que tenho leitores no Brasil a dizer que fui publicada na Europa. Eu moro lĂĄ hĂĄ tempo demais para ter esse tipo de ingenuidade. A Inglaterra tambĂ©m luta com esse problema de poucos leitores de literatura. NĂŁo Ă© uma batalha exclusiva do Brasil. O que eu faço sĂŁo algumas iniciativas para divulgar por lĂĄ que fazemos coisas de muita qualidade por aqui. JĂĄ promovi um evento de literatura infantil em Londres e Paris e tenho aberta uma livraria online, a Capitolina Books. Mesmo sendo muito pequena, ela jĂĄ faz circular alguns nomes e livros de escritores brasileiros que tĂȘm seus livros no nosso acervo. NĂŁo Ă© exatamente um empreendimento. Funciona muito mais como uma vitrine para mostrar tĂtulos que sĂŁo editados por casas independentes de publicação e que, pelo caminho normal, talvez nĂŁo chegassem lĂĄ fora. Eu divulgo tambĂ©m textos traduzidos por escritores brasileiros no site da livraria e ajudo a promover uma discussĂŁo sobre temas diversos ligados Ă industria do livro. Converso com editores e autores do mundo todo e deixo lĂĄ o conteĂșdo gratuito para quem quiser ler. Ă um grĂŁo de areia, mas jĂĄ Ă© um grĂŁo.
“A HistĂłria atĂ© aqui foi contada, inventada, recontada por homens e, mesmo fazendo uso da ficção como forma de chamar atenção para essa voz silente e calada, sabemos que atrocidades como as que estĂŁo no livro aconteceram frequentemente. SĂł nĂŁo foram exploradas, denunciadas e divulgadas porque nĂŁo era conveniente aos que contam e escrevem a HistĂłria oficial. As mulheres e os negros nĂŁo viraram nomes de ruas.”
– Li uma crĂtica que diz que o cerne da sua literatura Ă© o universo feminino. Nesse livro, mais uma vez, vocĂȘ dĂĄ voz Ă s mulheres. HĂĄ quem se incomode com o termo âliteratura feminina.â VocĂȘ classificaria sua literatura assim?
– Eu nĂŁo gosto do termo literatura feminina. Sem dĂșvida, Ă© um incĂŽmodo para mim porque Ă© um dos termos que mais reduz o trabalho das mulheres que escrevem. Eu nĂŁo me refiro a um tipo de literatura como literatura masculina ou literatura gay. Portanto, categorizar a literatura feita por escritoras como feminina Ă© uma diminuição, uma limitação. Essa classificação Ă© equivocada e sĂł ajuda a alimentar preconceitos tanto no leitor quanto no prĂłprio setor. Talvez hĂĄ quem suponha que nomear literatura de uma maneira tĂŁo restrita assim ajude leitores a escolher o que querem ler. Mas eu acho que seja um erro, inclusive porque subestima a inteligĂȘncia do prĂłprio leitor e consumidor de livros. A voz da mulher no meu romance acontece mais por uma questĂŁo de escolha narrativa. Nas duas primeiras partes do romance, eu falo de duas mulheres, especialmente. Para isso, fiz uso de uma voz narrativa em primeira pessoa. JĂĄ, no final, falo de dois homens e utilizei a terceira pessoa. A razĂŁo de fazer uso da primeira pessoa nas primeiras duas partes do romance foi a minha tentativa de dar o peso necessĂĄrio ao anonimato das mulheres na nossa HistĂłria. A HistĂłria atĂ© aqui foi contada, inventada, recontada por homens e, mesmo fazendo uso da ficção como forma de chamar atenção para essa voz silente e calada, sabemos que atrocidades como as que estĂŁo no livro aconteceram frequentemente. SĂł nĂŁo foram exploradas, denunciadas e divulgadas porque nĂŁo era conveniente aos que contam e escrevem a HistĂłria oficial. As mulheres e os negros nĂŁo viraram nomes de ruas.
“Sorte”
Autora: Nara Vidal
Editora (Moinhos, 100 pĂĄginas)
Lançamento em Guarani: 23 de junho, às 20h, no Bar da Kiki.
Trecho do livro “Sorte”
Irlanda 1806
SabĂamos lĂĄ em casa que aquela chuva, a enchente, os mĂłveis
arruinados, os ratos que subiam do porĂŁo para escapar do
afogamento, aquilo era tudo castigo de Deus. A nossa pobreza
também era punição do Senhor. Concordamos desde cedo
que abrir os olhos e atravessar horas infelizes até fechar as
pĂĄlpebras de novo era a nossa maior sorte.
A Martha, com aquelas mĂŁos esquisitas voando como se
ouvisse mĂșsica, batia os pĂ©s e ria. NĂŁo era gargalhada. Era
riso. Um riso nervoso. As costas pra mim. Nem percebeu que
fiquei parada atrĂĄs daquele corpo fino e elegante. Estiquei os
olhos para ver o riso dela. Dentro da bacia velha do quintal,
cheia de ĂĄgua da chuva, uma ratazana morria.
Presa ao horror do espetĂĄculo, assisti Ă cena inteira. Os olhos
feios do bicho começando a esbugalhar, de certo jå inchados
pela carne tomada pela imundĂcie da ĂĄgua. Debatia-se incessantemente.
A ratazana revirava-se sĂł para, em seguida, virar
de novo, buscando um sopro de ar jå escasso. Os pés e as patas
fizeram meus joelhos tremerem. Agitavam-se desafiando a
morte que ria dela, feito a Martha da janela.
Primeiro caiu o rabo, cansado da luta. TĂșrgida, roliça, a
ratazana parecia estourar. A pele da barriga brilhava de tĂŁo
esticada. Dentro dela, vivia a morte.