Não existe manicômio bonzinho
Essa semana, o país comemorou uma data história: o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Mas o 18 de maio não foi simplesmente de encontros e discussões no Brasil, foi um momento de protesto contra o risco de retrocesso e retomada de velhos modelos de atendimento de pessoas com doença mental. Partiu do Governo Federal a sinalização para mudanças na política de saúde mental que antes previa o fechamento de leitos de baixa qualidade, ou seja, leitos não resolutivos, que transformaram pacientes em moradores asilares de locais que foram e ainda são um depósito de gente.
Com a mudança na política nacional, os leitos psiquiátricos em hospitais especializados voltam a ser reconhecidos como parte da rede de atendimento do SUS e há um estímulo para sua manutenção e reabertura, a partir do aumento da diária do Sistema Único de Saúde. A coordenação nacional de saúde mental nega que seja uma estratégia de retomada de modelos manicomiais, mas admite que a intenção é utilizar a capacidade instalada – que até o início dos anos 2000 era de mais de 50 mil leitos psiquiátricos -, época em que o gasto com essas estruturas ocupava o topo da pirâmide da saúde. Gastava-se muito para manter as coisas da mesma forma, ou seja, não promover a ressocialização de ninguém, já que, historicamente, doentes mentais sempre foram um cheque ao portador. Os donos de hospitais recebiam por cabeça e ficaram ricos “guardando” essa gente.
Com a redução para atuais 18 mil leitos, o dinheiro saiu da mão dos hospitais para ser investido em uma rede de atendimento que ofereça cuidado em liberdade. Os “donos” dos doentes nunca aceitaram a perda da rentabilidade. E aproveitam as falhas no funcionamento dos modelos substitutivos para reascender a discussão sobre a necessidade de se ter locais para internação, pois os “doidos” passaram a engrossar a população de rua.
Se o argumento é verdade, em parte, o que está por trás dele encobre a verdadeira intenção dos opositores dessa causa. Definitivamente, não existe manicômios bonzinhos ou humanizados. A não implantação efetiva da rede de atendimento não pode ser usada como justificativa para um passo atrás. A luta precisa ser pelo monitoramento desses espaços, pela estruturação dos Caps, pela abertura de leitos psiquiátricos em hospitais gerais, além da implantação de novas residências terapêuticas no país, já que hospital não é lugar de moradia.
Pergunte ao Paulo, membro do Fórum Gaúcho de Saúde Mental, o que ele pensa sobre a ideia de voltar a ser invisível, de ser impedido do direito de ir e vir e de ser dono de suas vontades? Pergunte a Zélia, mãe de filhos que ela não pôde criar, o que acha de voltar a ser trancada em estruturas que transformam gente em coisa? Pergunte a Elzinha, que foi violada sexualmente aos 9 anos dentro de uma unidade psiquiátrica, o que ela sente diante da possibilidade de deixar sua moradia, onde tem o tão sonhado sofá vermelho, para existir em lugar nenhum, sem direito ao reconhecimento de sua individualidade?
Que o 18 de maio nos lembre da dívida histórica do Brasil com pessoas que tiveram sua humanidade confiscada por décadas a fio. Que as vozes delas nos façam pensar que o retrocesso é um gatilho para a retomada da barbárie.