Abrindo o prefácio de “Pôquer a seis”, a jornalista e doutora em Estudos Literários Fernanda Fernandes confessou que não conhece o jogo para além dos estereótipos dos filmes Hollywoodianos. Também não conheço. Senti certo alivio para conduzir esse Sala de Leitura. Para surpresa minha, os seis “jogadores” que se reuniram, por mais de um ano, em torno de uma mesa, que não era de pôquer, para debruçar-se sobre a construção psicológica de personagens e seu lugar nas narrativas e escrever, também desconheciam as regras da jogatina. E isso pouco importa, porque, na arte de jogar com as palavras, Elena Duarte, Gustavo Burla, Louise Nascimento, Mariana Virgílio, Raíssa Varandas e Táscia Souza mostraram-se mestres. Nas ilustrações, a mestria é de Bernard Martoni.
O cenário do livro é uma mesa de pôquer. A cada conto, um personagem toma as rédeas da história e nos conduz a um desfecho surpreendente. Como a proposta, desde o início, foi trabalhar com arquétipos de Carl G. Jung, cada autor incorporou um dos seis principais jogadores da psicologia junguiana, “cujas faces o ser humano assume para, em cada momento, apostar suas fichas na vida”: Self, Ego, Sombra, Persona, Anima e Animus. Conheço os escritores (alguns, mais; outros, menos), por isso, fiquei tentando encontrar neles características de cada personagem. Tarefa vã, porque, como bons jogadores que se tornaram, aprenderam muito bem a matemática do blefe.
Por falar nisso, não é que essa turma compõe um grupo de Estudos Matemáticos? Pura ironia. Entre eles, os números passam longe. “A gente conta de outras formas. Letra mais letra, palavras que se multiplicam em outras. De cálculos nem entendemos tanto assim. Alguns de nós até preferem enterrar as antigas fórmulas aprendidas na escola. No entanto, a gente entende de somar ideias”, dizem os Matematikós, em “Pôquer a seis”.
Quem quiser conferir o resultado dessa instigante experiência com o carteado, o lançamento da publicação é nesta terça-feira (20 de março), às 19h30, no Forum da Cultura (Rua Santo Antônio 1.112). “Pôquer a seis” foi produzido por meio de um financiamento coletivo no Catarse que rendeu ao grupo cerca de R$ 22 mil. Ele é o segundo livro lançado pelo Projeto Hupokhondría (o primeiro foi “99 receitas”), que chega aos 10 anos de atividades neste mês de março, e o primeiro do Estudos Matemáticos. Em hupokhondria.com, você, leitor, encontra um conto inédito toda semana. Acompanhe o bate-papo com Gustavo Burla e Raíssa Varandas.
Marisa Loures – No prefácio de “Pôquer a seis”, a Fernanda Fernandes diz que não conhece “o jogo para além dos estereótipos dos filmes Hollywoodianos”. Sei que tem integrante dos Jogos Matemáticos que também não conhece e não sabe jogar. Por que a escolha do pôquer como pano de fundo dessas histórias? Alguma motivação especial?
Gustavo Burla – Na verdade, a gente começou a jogar com a literatura. O pôquer aconteceu. Alguns integrantes aprenderam a jogar depois que a gente já tinha aberto o financiamento coletivo do livro. A ideia era o seguinte: vamos escrever. Cada um tem uma semana para escrever usando um arquétipo diferente. A primeira pessoa escolheu um arquétipo e teve uma semana para escrever. Aí ela entregou o conto, e a pessoa seguinte escreveu a partir daquele conto com os cinco arquétipos que sobraram, e assim foi diminuindo. A única obrigação era escrever no mesmo ambiente de quem tivesse começado. A minha noção de pôquer era a mesma do cinema também. A Fernanda acertou sem a gente conversar. Fui pesquisar da wikipedia até site de dicas, para ver se tinha alguma coisa para acrescentar no conto. Foi um desafio interno, não só literário.
– Por serem muitas cabeças, cada um com uma inspiração, houve algum tipo de dificuldade para achar um norte, uma vez que todas as narrativas se passam numa sala de jogadores de pôquer?
Raíssa Varandas – O “Pôquer a seis” é resultado de mais de um ano de pesquisa. A gente se encontra de 15 em 15 dias, e, nesses encontros, trabalhamos em cima de temáticas. A gente passou por contos de fadas, e eles levaram aos arquétipos de Jung. Foi uma pesquisa que terminou, como sempre, já que é a proposta, na escrita. Quando a gente chegou à fase da escrita, da discussão dos personagens e um pouco do ambiente, os arquétipos já eram conhecidos. O desafio era literário, porque a parte teórica e o embasamento a gente construiu. Começamos a escrever já tendo ciência do que iria fazer. Domínio é difícil de falar porque a gente nunca tem. Quando começa a escrever, a primeira palavra, você já tem dúvida se está no lugar certo.
– Os Estudos Matemáticos que deram origem ao livro são um projeto gestado dentro do Hupokhondría, que também é um projeto de construção de narrativas em vários formatos: livro, teatro, curtas e o que ainda está por vir. A filosofia do Hupokhondría tem a ver com os males que todos sofremos, sejam eles físicos, psíquicos, sociais. A escrita para vocês é uma forma de chegar à cura?
Gustavo – É uma doença. A gente é dependente. O Hupokhondría nasceu por causa dessa dependência. Um dia a Táscia me ligou dizendo: “Olha, você está precisando escrever, e eu também. Vamos começar a escrever.” Só o fato de ela me ligar dizendo “você está precisando escrever”, já dá para perceber que tem uma coisa patológica aí. É uma obrigação. E aí tem uma coletânea de cartas do Bukowski que se chama “Escrever para não enlouquecer”. Quando bati o olho no título, eu disse: “gente é isso. Se a gente não escreve, a gente enlouquece”. E enlouquece mesmo. No Hupokhondría, somos a Táscia e eu; no grupo de estudos, somos seis. A Raíssa até comentou isto: “A gente só escreve no final da pesquisa, mas estamos precisando escrever mais. Se a gente só deixar para escrever uma vez por ano, no final, a gente surta mesmo”. E precisa escrever qualquer besteira que seja. Para um falar mal, e a gente corrigir, depois melhorar. O Hupokhondría nasceu de uma doença, e vamos falar de doenças nossas enquanto sociedade, e não só indivíduo. Essas doenças todas: econômicas, psicológicas, físicas, culturais e, hoje, políticas, principalmente. E elas vêm nos contos que são publicados, semanalmente, no site há 10 anos. Agora em março, a gente faz 10 anos publicando semanalmente, e aos poucos essas narrativas foram ganhando outros espaços. Uma cena curta em 2012, que depois virou uma coletânea de cenas em 2014. No ano passado, foram dois espetáculos, o “Linha dois” e o “Educandário São Bernardo”. Agora essas peças vão voltar à ativa em festivais, e a expectativa é a de que elas circulem por um bom tempo. Os curta-metragens, em que a gente brinca de contar histórias, a gente vai aprendendo, errando e consertando. É o que a gente faz também com a fotografia no Instagram, e o que aparecer de história para contar. Agora vem a proposta de uma história em quadrinhos. A gente está trabalhando nela para ver o que acontece. Devagarzinho a gente vai tentando não enlouquecer.
– Estudos Matemáticos é um nome que não tem nada a ver com vocês, porque vocês lidam com palavras e não com números. Por que a escolha?
Raíssa – Foi uma ironia. Surgiu porque a gente estava precisando dividir um roteiro e começou a fazer contas para ver qual parte cada um iria ficar. Aí surgiu uma brincadeira: está parecendo mais um grupo de estudos matemáticos e não de literatura. E acabou ficando, tanto pela ironia, porque na verdade a maioria ali não gosta de números, e também pela piada interna da necessidade dos números. Acaba que os números vão surgindo de alguma forma.
– Alguns colaboradores do financiamento coletivo escolheram um autor e uma palavra que deveria ser usada em um conto. Como foi produzir “sob encomenda”?
Gustavo – A Raíssa faz isso com primor maior que o meu. Foi um exercício feito diariamente, acompanhado de palavrões. Tinha palavra que a gente olhava e dizia: “o que eu vou fazer com essa palavra? Por que a pessoa escolheu essa palavra?” Xingava a pessoa e a palavra. Mas depois que o trabalho estava feito, falava: “ah, foi um exercício bom”. Na semana passada, a gente se reuniu, leu os contos todos, comentou cada um deles, viu as semelhanças e diferenças de estilos e alternativas. Foi um trabalho hercúleo, muito cansativo, mas foi muito bom. Vamos receber das pessoas retornos muito legais pelo que a gente escreveu, porque algumas coisas foram pensadas para as pessoas.
– O “Pôquer a seis” foi publicado através de um financiamento coletivo, e o resultado deu muito certo. Essa pode ser uma saída para os jovens escritores mostrarem sua escrita?
Raíssa – A gente teve que aprender no susto. Quando o projeto terminou, o livro estava pronto, faltando apenas as ilustrações, ele foi se desenvolvendo muito lentamente, porque estávamos aguardando a Lei Murilo Mendes, que não aconteceu em 2017. Chegou num limite em que a gente falou : “se a gente não fizer alguma coisa agora, o livro não sai em março, que é o mês de aniversário de 10 anos do Hupokhondría, e é o primeiro trabalho publicado do Estudos Matemáticos”. E foi aquele negócio: sentamos um dia inteiro, colocamos no ar. Foi uma correria. “Como temos que fazer para conseguir dinheiro?” Aí liga, manda mensagem, divulga em rede de amigos… A gente foi aprendendo a fazer. Até chegar ao limite: “se precisar, quanto a gente pode pôr?” Porque é muito caro imprimir um livro. A gente não precisou desembolsar muito não, só completar um pouquinho no final, e, no final das contas, deu tudo certo. É muito difícil achar uma editora que resolva bancar seu livro, ainda mais quando se é um escritor iniciante. Acho que o financiamento é uma boa forma de colocar no mundo uma criação sua e que, às vezes, não encontra apoio. E as pessoas apoiam. Começamos preocupados, porque o valor era muito alto, mas conseguimos. Foi surpreendente nesse sentido.
Autores: Elena Duarte, Gustavo Burla, Louise Nascimento, Mariana Virgílio, Raíssa Varandas e Táscia Souza
Ilustrações: Bernard Martoni
114 páginas
Lançamento de “Pôquer a seis”
Terça-feira, 20 de março, às 19h30, no Forum da Cultura (Rua Santo Antônio 1.112 – Centro).
Sala de Leitura
Quinta-feira, às 9h40, na Rádio CBN Juiz de Fora (AM 1010).