Roberto e a parte que lhe cabe
Há 25 anos, o chinês Wu Wei Shi desembarcou no Brasil para construir uma vida melhor. Hoje vende pasteis numa das casas mais movimentadas da Getúlio Vargas, onde passa mais de 14 horas de seus dias
Eles não fundamentaram a cidade. Mas existiram desde o princípio. Num recenseamento da população de Juiz de Fora realizado em 1893, eram apenas dois. Representavam o 13º mais expressivo grupo de imigrantes na cidade. Ainda que sem empunhar a pena, ajudaram na escrita da história da urbe justamente pelo silêncio que faziam enquanto trabalhavam muito. E continuam. Wu Wei Shi viveu menos tempo em sua província de Guangdong, no Sul da China, do que os 24 anos em que comanda uma das mais movimentadas pastelarias da Getúlio Vargas, a Mundial, na esquina com as ruas Batista de Oliveira e Marechal Deodoro. Inquieto, parece reproduzir em gestos o ambiente de cores, cheiros e sons em excesso.
“Tenho que trabalhar”, repete exaustivamente. E pega um salgado, serve um refrigerante, faz a garapa, devolve o troco, vai ao outro lado e verifica o balcão. Conta dinheiro, cumprimenta cliente, repara em quem chega e em quem sai. Se cansa, despista. “Todo dia chego cedo. Se faltar pessoa para trabalhar, eu faço o trabalho dela. Depois fecho o caixa. Quase não tenho tempo de dormir. A perna fica inchada e, às vezes, preciso ir na farmácia tomar uma injeção (para aliviar a dor e a tensão). Todos os dias chego às 7h30 e saio às 21h. Quando tenho que arrumar alguma coisa, acabo saindo meia-noite”, conta o comerciante. Sonho?! “Penso só em trabalhar para ganhar dinheiro para os filhos estudarem. Agora é esperar eles crescerem para depois descansar.”
Eu te batizo, Roberto!
O trabalho era tanto que Wu demorou a se dar conta de que carecia de outro nome. “Quando cheguei em Teresópolis (RJ), trabalhava numa pastelaria e todo dia um taxista ia lá lanchar, comer um pastel e tomar um cafezinho. Ele perguntou meu nome. ‘Tenho nome não, cheguei agora’, respondi. Aí ele disse: ‘Tem que ter um nome, vai ter um nome bonito: Roberto'”, recorda-se o Wu, que na juventude aceitou um convite do marido da irmã de seu pai. “Meu tio veio primeiro. Aqui ele se chama Júlio. Ele foi para o Canadá e depois veio morar no Brasil, em Teresópolis. Falava que aqui era muito bom. Hoje tem duas pastelarias que funcionam 24 horas. Tem muito movimento. Fiquei um ano por lá e depois vim para Juiz de Fora. Quando cheguei, estava com 20 anos. Senti muita saudades de lá, dos amigos, dos parentes, do meu pai, da minha mãe, das minhas irmãs. Cheguei e só trabalhava, até aos domingos e feriados. Tinha hora que colocava músicas chinesas e chorava”, lembra ele, adaptado ao “jeitinho brasileiro”, ao feijão com arroz, ao riso fácil, à intimidade veloz, mas ainda em processo de aprendizado de um português tão distante de seu mandarim natal. “Feijão é muito bom. Fica forte. Cheguei aqui magrinho. Não falava nada e só trabalhava, não tinha tempo para estudar, então, demorei a aprender.” Pastel ele descobriu no Brasil. Já a cana, conheceu melhores. “A cana lá é muito macia, só tirar a casca e chupar, não precisa de máquina, não.”
Eu te aceito, Wu!
O trabalho era tanto que Roberto não se permitia namorar. “Muitas meninas vinham aqui me convidando para sair. Eu dizia: ‘Estou sem tempo!’. Iam embora”, conta ele que, quando achou necessário dividir a vida, foi até à China para conhecer e se casar com Wu Caijuan. “Fui lá casar. Muita gente perguntava: ‘porque não casar aqui?’ Mas era difícil, porque trabalho à noite, domingo e feriado, e se casasse com uma brasileira não daria certo, a mulher iria embora”, comenta. Segundo ele, o brasileiro é correto ao adotar o descanso, mas só uma chinesa compreenderia sua compulsão para o trabalho. Após 11 anos morando no Brasil, ele voltou para Guangdong. Os parentes ajudaram na escolha da noiva. “Cheguei lá, saí para passear e em duas semanas estávamos casando”, lembra ele que, um ano mais tarde, quando os papeis ficaram prontos, retornou para buscar a mulher. Ela, no pousar do avião, também adotou um novo nome. Bruna, de 38 anos, passa as horas na cozinha da pastelaria fazendo os salgados. No apartamento da Rua Marechal Deodoro ficam os pais de Roberto, que ele conseguiu trazer para perto após uma década no Brasil. Os idosos ajudam a cuidar dos quatro filhos do casal – Luciana, 11, os gêmeos Pedro e Gabriel, 5, e a caçula Luiza, 3.
Eu te nomeio, Mundial!
O trabalho era tanto na China, montando placas de computador numa fábrica da família, que Roberto se acostumou. “Aqui no Brasil, o chinês trabalha, no mínimo, 12 horas. Na China, trabalham oito horas, mas fazem muita hora extra. A situação já mudou. Quando eu morava lá, a carteira assinada era diferente. O trabalhador demitido recebe pouco do patrão. Aqui é melhor para ser empregado.” Filho de um pedreiro e de uma dona de casa, Roberto cursou apenas oito anos de escola e logo viu opacas as perspectivas. “Na China não dá para ser muito rico. Por isso todo mundo tentava ir para outro país. Hoje a situação mudou muito. Tanto que tem muito chinês que voltou para lá”, diz, certo das raízes que fixou junto da família. Uma das duas irmãs, Márcia, também tem uma pastelaria na Getúlio Vargas. A outra, Patrícia, vive em São Paulo. Felipe, o sobrinho da esposa Bruna, é a nova geração que continua a arriscar o voo. É preciso coragem, garante o chinês Roberto com seus 45 anos e alguns fios brancos nos cabelos negros. Persistência, também. “Antigamente aqui era o Café Dia e Noite. Meus tios vieram para cá. Eram três sócios e não dava muito dinheiro, um salário só para cada um. Eles ficaram dois anos e foram embora. Só eu fiquei”, conta. Por muito tempo manteve a casa aberta aos domingos. Acabou fechando, para descansar. Há seis meses voltou a abrir. Nas poucas horas em que não está no trabalho, gosta de passear com a família nos shoppings e pescar. “Mas só tem peixe pequeno”, reclama. Futebol? Só na televisão. Bom mesmo, diz, é trabalhar.