Estudantes querem mudar nomes de ruas que homenageiam ditadores
Proposta é provocar reflexão na comunidade e não deixar que crimes sejam esquecidos
“A Ditadura Militar jamais pode ser esquecida, para que não corra o risco de se repetir nas próximas gerações. Não vejo sentido em homenagear personalidades deste período. O ideal seria que as vítimas fossem reverenciadas”. A proposição é da estudante Ana Paula Massote Pestana, de 16 anos, aluna do ensino médio e integrante do projeto Novas Ruas de Juiz de Fora, realizado pelo curso Cave. A iniciativa, que vem sendo desenvolvida há seis meses, conta com cinco estudantes sob orientação do professor de geografia e sociologia Marcos Siqueira Dutra, que também é coordenador pedagógico da escola. O grupo começou a existir com o propósito de criar meios para substituir nomes de ruas e espaços públicos da cidade que fazem referência a figuras ligadas ao período da Ditadura Militar, época da história do Brasil marcada por abusos de poder, torturas, diminuição dos direitos dos cidadãos, censura e cassação de partidos políticos.
A ideia, que começa a ganhar adesão no município, tem inspiração em outras partes do Brasil. No Rio de Janeiro, a Ponte Rio-Niterói, batizada oficialmente de Costa e Silva, segundo presidente militar e responsável por decretar o Ato Institucional nº5 (AI-5), teve projeto aprovado pela Câmara de Deputados para ter seu nome substituído para Herbert de Souza, o conhecido Betinho, sociólogo que foi exilado e, após a anistia, se engajou numa luta de combate à pobreza e à fome. Em São Paulo, a Câmara Municipal aprovou a mudança do nome do Elevado Costa e Silva, o popular “Minhocão”, para Elevado Presidente João Goulart, que foi deposto pelas Forças Armadas no dia 1º de abril de 1964.
De acordo com o professor Marcos Dutra, o projeto juiz-forano tem a intenção de se expandir, sendo levado para demais escolas privadas, para estabelecimentos de ensino público e auditórios em geral, com a finalidade de ganhar vulto e sensibilizar a população para que haja uma mudança desses nomes, seja por meio de um projeto de iniciativa popular ou pela proposta de algum vereador. O grupo tem como sugestão a mudança dos nomes da Avenida Presidente Costa e Silva, no Bairro São Pedro, na Cidade Alta; da Escola Estadual Presidente Costa e Silva, em Benfica, Zona Norte; e da Estação de Tratamento de Água (ETA) Marechal Castelo Branco, localizada na Represa de João Penido. Castelo Branco foi um dos articuladores do Golpe de 1964 e o primeiro ‘presidente’ ditador.
“Queremos conscientizar as pessoas que convivemos com os nomes de torturadores e, muitas vezes, reverenciamos esses nomes. Então, o objetivo é não deixar ‘morrer’ na cabeça dos jovens quem foram esses ditadores, para que não possam transmitir essa reverência para gerações futuras”, ressalta o professor. O projeto elaborou uma lista com nomes de personalidades juiz-foranas como sugestão para as possíveis mudanças. Os homenageados seriam Joãozinho da Percussão, Mamão, Ministrinho, Murilo Mendes, Murílio Hingel, Nelson Silva, Pedro Nava e Rubem Fonseca.
‘Acende um sinal de alerta que é preciso fazer algo’
Além de Ana Paula, o grupo é formado pelos alunos Laura Tomé, Gabriel Mendonça, Vinícius Mendes e Matheus Borges, todos do ensino médio. Ao longo do tempo em que estão atuando juntos, eles já visitaram a Câmara Municipal, fizeram curso de participação legislativa e marcaram presença na audiência pública da Comissão da Verdade, estabelecendo contato com vereadores que demonstraram simpatia pela proposta. A expectativa é de que um projeto de lei possa ser criado, para que, de fato, aconteça a alteração dos nomes desses lugares.
“O plenário da Câmara já teve o nome de presidente Costa e Silva e foi mudado. O vereador Betão (Roberto Cupolillo, PT) chegou a trabalhar a possibilidade de mudança da Avenida Costa e Silva, no São Pedro. Num momento que se vive uma anomia, na qual se passa a desconfiar do Judiciário, do Legislativo e do Executivo, e quando a gente começa a ouvir entre familiares e amigos: – Ai que saudade do governo militar!, acende um sinal de alerta que é preciso fazer algo para esclarecer à sociedade o que representou esse período militar no Brasil. Quando se começa a fazer uma discussão dessa com alunos com essa idade, eles passam a entender a história e transformam-se em vetores, porque são fatos históricos que não podem ser apagados”, enfatiza Marcos Dutra.
Pelo Novas Ruas, caso ocorram as mudanças de fato, o intuito é de que as novas placas com os nomes dos logradouros façam referência aos antigos nomes, indicando, inclusive, o motivo da mudança. Com isso, a ideia é buscar uma reparação simbólica, que sirva de marco para as atuais e futuras gerações. “A história do nosso país não pode ser esquecida e, lógico, que as cicatrizes existentes devem ser sanadas, para que a sociedade possa se recuperar, mas nunca podem ser apagadas”, pontua o estudante Matheus Borges, de 17 anos.
Comunidade desconhece história de personagens
O grupo de estudantes criou um questionário, perguntando para as pessoas, durante encontros realizados, se elas gostariam de ter os nomes das ruas substituídos. O resultado, conforme o professor, foi uma “decepção”, porque boa parte dos que responderam não sabiam sobre a historia das pessoas que emprestavam seus nomes para as vias públicas. “Assim redirecionamos o questionário, apresentado a história de cidades onde esses nomes foram mudados. Mas, ainda assim, quando perguntamos quais nomes poderiam substituir, eles não sabiam sugerir. Por isso, criamos uma lista de nomes de personalidades de Juiz de Fora, que o grupo passou a estudar e considerou válida. Isso a gente pode levar para a comunidade e verificar se ela terá simpatia ou não por esses nomes. Isso a gente ainda não experimentou”, afirma o professor, acrescentado que essa idéia faz parte do projeto de expansão do grupo. “Para mudar o nome das ruas, é preciso criar a afinidade desses nomes com a comunidade. Inclusive, ela mesma poderá contribuir, sugerindo nomes de pessoas que estejam mais próximas dela”, conclui.
Na Avenida Presidente Costa Silva, no São Pedro, a possibilidade e mudança do nome da via causa controvérsia entre os moradores, conforme constatou a Tribuna. A universitária Lavínia Moreira, 20, é a favor da troca. “Acho uma ideia positiva, justamente porque a Ditadura Militar não foi uma época boa para o Brasil. Então, não convém homenagear essas pessoas.” O morador Victor Roberto de Campos, 86, é da mesma opinião. “Ele (Costa e Silva) não tem histórico para merecer ser nome de avenida e nem de beco. Eu fui vítima deles, trabalhando como jornalista, na Rádio Congonhas, em Congonhas.” Já o comerciante Luiz Carlos Lins Rezende, 53, pensa diferente. “Para mim não faz diferença e não me sinto incomodado. Foram fases da nossa vida no país e que agora não faz diferença.”
Em 2012, o vereador Betão (PT) propôs mudar o nome da Avenida Presidente Costa e Silva, no São Pedro, sob o argumento de que os moradores e a cidade não deviam ser obrigados a conviver com uma homenagem a um presidente da Ditadura Militar, contudo, a ideia não teve sequência. “Com a proposta do vereador José Fiorilo de que, para haver a mudança do nome de uma rua há a necessidade de realização de um plebiscito, o meu projeto ficou parado”, explicou Betão, acrescentando que considera importante a troca dos nomes.
“Não dá para prestar homenagem àqueles que deram golpe no Brasil em 1964. É preciso seguir uma tendência que ocorre no país inteiro de substituir esses nomes”. Em 1995, dois anos após a morte do poeta Daltemar Cavalcanti Lima, o então vereador Gilberto Vaz de Mello, que era amigo do escritor, apresentou projeto mudando o nome da Praça do Bom Pastor, que levava o nome do General Emílio Garrastazu Médici. A proposta, no entanto, foi vetada integralmente pelo então prefeito Custódio Mattos (PSDB). Mas o parlamentar conseguiu apoio da bancada, e o veto foi derrubado no dia 9 de setembro do mesmo ano. A promulgação da proposta ocorreu, mas o local continua sendo mais conhecido como Praça do Bom Pastor.
Necessidade de adoção de políticas de memória
Professor do Departamento de História da UFJF, o sociólogo Fernando Perlatto, enxerga de forma positiva iniciativas com o perfil da que é desenvolvida pelos estudantes, uma vez que, no Brasil, não há políticas de preservação da memória. “Isso tem relação com o nosso processo de transição para a democracia, que foi ancorada na Lei da Anistia, que foi construída em torno da ideia de se perdoar todos, para que não olhássemos para o passado e construíssemos um futuro diferente.” O professor destaca que, desde o processo de redemocratização, não foram desenvolvidas políticas por parte do Estado para construir lugares de memória, para lembrar e debater a ditadura, o que é diferentemente de outras sociedades, como na Alemanha ou na própria América Latina, na Argentina.
“As novas gerações no Brasil, em geral, não são formadas com esse trauma sobre o que foi a ditadura. E, se isso é verdade em âmbito nacional, é verdade em Juiz de Fora. A Comissão Municipal da Verdade mostra como a cidade não foi apenas o berço da ditadura, mas abrigou práticas de tortura, prisão e arbítrio muito grande. Mesmo assim, Juiz de Fora não tem lugares de memória da ditadura. Não há placas, não há monumentos, nada que faça, no espaço público, as pessoas lembrarem o que foi aquele período”, observa Perlatto.
Todavia, o sociólogo lembra que, apesar de positivas e louvadas em razão de uma ausência de política de memória, essas iniciativas não são suficientes para solucionar a questão. “Não necessariamente a construção de um monumento, a mudança de um nome de rua, resolve o problema da memória, pois devemos levar em conta os discursos que são construídos sobre esses monumentos. Então é importante que as pessoas construam discursos em torno daquela placa, senão será apenas a mudança de uma por outra”, ressalta, ao defender o desenvolvimento de uma política de memória em torno de um monumento, de uma placa, para gerar uma discussão pública do que foi a ditadura e fazer diferença na vida das pessoas.
“A cidade não foi apenas o berço da ditadura, mas abrigou práticas de tortura, prisão e arbítrio.Mesmo assim, Juiz de Fora não tem lugares de memória da ditadura” (Fernando Perlatto, professor e sociólogo)
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