Cidade literal
Algumas histórias caberiam melhor no espaço da ficção. Outras, no entanto, esperamos sair das páginas da literatura para tornar mais leves os dias. Há um tanto de ficção na vida. Como há generosa porção de jornalismo nas histórias que os escritores contam. Ninguém está a salvo das armadilhas das verdades e das mentiras. Para marcar os 167 anos de Juiz de Fora, a Tribuna convidou oito escritores para retratarem, com sua sensibilidade, diferentes notícias locais.
A reinauguração do Cine Palace, em 1999, que abre estas páginas, é homenageada pelas penas de Darlan Lula, num pessimismo a indicar o lugar no passado que o cinema já ocupa no imaginário do juiz-forano. Cheio de dor, Felipe Moratori torna delicada a densa quantidade de terra que sufocou uma mulher de 53 anos e engoliu três casas no Bairro Jardim Natal, em 26 de dezembro de 2013. “Eu estava lá. Presenciei o momento do deslizamento”, conta o dramaturgo e diretor teatral, recordando-se da triste visita.
Iacyr Anderson Freitas também era presença na cena que descreve ao resgatar a recente manifestação contra a reforma da Previdência, em abril passado, para a qual cria o discurso de um Isolino palpável, ainda que irreal. Em sua dicção rodrigueana, Léo Bomfim lança mão do samba e do suor dos carnavais antecipados. Mônica Calderano relembra as lágrimas festivas de uma família com a chegada da fábrica da Mercedes-Benz. “‘Nada será como antes’, que dá título ao meu texto, é uma frase que estava no discurso do então prefeito Custódio Mattos na cerimônia de abertura da fábrica”, comenta a jornalista e blogueira, que não viveu o momento, mas compartilhou, durante seu trabalho como repórter e editora de economia na Tribuna, das expectativas que cercavam o empreendimento.
A mala “fantasiada” de bomba que parou a Avenida Rio Branco em 2010 era da mãe do cineasta Pedro Carcereri. “Ela jogou fora colocando na calçada. Alguém passou e pegou”, diz ele, que, no conto que leva como título a marca da bolsa (Primícia), retoma a história pela ótica do objeto. Rafael Coutinho também muda o ângulo e reconta o caso da morte das capivaras envolvendo o ex-vereador João do Joaninho, do ponto de vista das capivaras, símbolos da cidade.
Passando por lugares-ícones de Juiz de Fora, Ulisses Belleigoli cria o desenho surreal ao abordar a permanência, em 2035, do Cine Palace, que fecha suas portas no próximo dia 14. Ironicamente, a ficção reescreve o passado, traça o presente e rascunha o futuro diante da impossibilidade de o noticiário fazê-lo. Literalmente e literariamente, a cidade é retratada em toda a sua potência, no que é e no que poderia ser.