‘Estamos nos encaminhando para um beco sem saĆda’
A classe mĆ©dia baixa brasileira classe Ć© personagem e tema da literatura do mineiro Luiz Ruffato. HĆ” 14 anos vivendo estritamente do universo dos livros, apĆ³s o estrondoso sucesso de “Eles eram muitos cavalos”, de 2001, o escritor defende que as mudanƧas sociais e econĆ“micas neste perĆodo nĆ£o foram o bastante para atingir as existĆŖncias. “O grande desafio Ć© se posicionar em relaĆ§Ć£o Ć s mudanƧas, trazendo-as para dentro da literatura. O que me interessa mesmo, mais que a questĆ£o social do proletariado, Ć© o pertencimento, que permanece o mesmo”, pontuou ele na manhĆ£ de ontem, momentos antes de abrir a I Jornada de MĆdia e Literatura, na Faculdade de ComunicaĆ§Ć£o da UFJF – justamente na mesma semana em que se espera concluĆda a votaĆ§Ć£o pela comissĆ£o especial da CĆ¢mara dos Deputados do relatĆ³rio acerca da reforma da PrevidĆŖncia, que altera substancialmente os modos de vida dessa classe mĆ©dia baixa retratada pela pena de Ruffato.
Eminentemente polĆtica, sem partidarismos ou panfletos, a literatura produzida por Ruffato apresenta-se como retrato dos que nĆ£o puderam se sentar Ć mesa. Por isso, permanecem atuais livros lanƧados jĆ” hĆ” mais de uma dĆ©cada. NĆ£o Ć toa, “Eles eram muitos cavalos” chega Ć s prateleiras com nova capa, e a pentalogia “Inferno provisĆ³rio” acaba de ser lanƧada em Ćŗnica ediĆ§Ć£o. “Desde quando lancei o ‘Eles eram…’, em 2001, todos os meus livros sĆ£o livros de trabalho ao mesmo tempo. Em geral, ocorre de um autor, a cada tĆtulo novo, ter o novo como livro de trabalho. Comigo nĆ£o Ć© assim. O ‘Eles eram…’ Ć© sempre editado no exterior, entĆ£o sempre trabalho com ele fora do Brasil. Em 2017, atĆ© o final do ano, terĆ£o trĆŖs adaptaƧƵes dele para o teatro com trĆŖs grupos diferentes. ‘Estive em Lisboa e lembrei de vocĆŖ’ tambĆ©m Ć© livro de trabalho, como o ‘Inferno provisĆ³rio’ que saiu completo”, diz.
Ruffato segue escrevendo, portanto, como um pesquisador constantemente confrontado com novas dĆŗvidas. “O que me instiga a escrever Ć© continuar pensando a respeito desse problema que Ć© o Brasil. Me interessa pensar: Porque o Brasil Ć© assim? NĆ£o como tentativa de dar soluĆ§Ć£o, mas de reunir elementos para uma reflexĆ£o. Quem nĆ³s somos e o que queremos ser como coletividade? Acho que estamos nos encaminhando para um beco sem saĆda como coletividade. Ć uma coisa estranhĆssima.”
Ao passo que nĆ£o mudou o sentimento de pertencimento dessa classe mĆ©dia baixa, tambĆ©m nĆ£o mudou sua visibilidade no campo das letras. Enquanto a literatura perifĆ©rica, em expansĆ£o e crescente foco midiĆ”tico, insere por definitivo as questƵes da opressĆ£o e do silenciamento da populaĆ§Ć£o marginal na vida cotidiana, a classe operĆ”ria que estampa diferentes tĆtulos de Ruffato segue sem prestĆgio algum, defende o escritor. “A populaĆ§Ć£o marginal sempre teve espaƧo na literatura brasileira. De uma maneira equivocada, preconceituosa, folclĆ³rica ou exĆ³tica, mas sempre teve. A minha insistĆŖncia Ć© que quem nĆ£o teve essa visibilidade Ć© a classe mĆ©dia baixa, que ainda nĆ£o tem representaĆ§Ć£o na literatura. Todo o trabalho da chamada literatura marginal Ć© um esforƧo para revelar um ambiente que de algum modo jĆ” existia. Mas essa populaĆ§Ć£o imprensada entre a populaĆ§Ć£o marginal e a classe mĆ©dia mĆ©dia Ć© pouco explorada, porque nĆ£o tem o ‘glamour’ da marginalidade, nem o ‘glamour’ dos personagens intelectuais com suas questƵes existenciais”, comenta ele, cronista polĆtico do “El PaĆs” no Brasil.
Natural de Cataguases (MG), Ruffato utilizou-se, entĆ£o, das prĆ³prias raĆzes para traƧar um cenĆ”rio maior e mais complexo. “Cataguases, por razƵes muito estranhas, continua sendo um microcosmo muito curioso do paĆs. Porque faz os altos e baixos exatamente como o Brasil faz”, pontua ele, apontando para as ruĆnas de um endereƧo do qual partiu para, filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira, estudar jornalismo. “Quando comparamos com outras regiƵes, como o Sul de Minas e o Oeste, ou mesmo o Centro, percebemos que a Zona da Mata parou, com cidades com uma violĆŖncia altĆssima, sem saĆda econĆ“mica. Cataguases tem uma indĆŗstria tĆŖxtil que se arrasta hĆ” 40 anos. MunicĆpios que, do ponto de vista urbano, sĆ£o absolutamente caĆ³ticos. Inclusive perdeu a forƧa polĆtica. Ć um cenĆ”rio triste.”
O trabalho continua
Esse panorama, que ele caracteriza como “trĆ”gico”, tambĆ©m Ć© o bastante para que o escritor nĆ£o perca o fĆ“lego. Este ano, em setembro, publica o livro de contos “A cidade dorme”. E planeja, para o fim de 2018, um novo romance. “EstĆ” em processo. Tenho uma forma de escrever muito esquisita. Escrever nĆ£o Ć© o problema, mas reescrever. O livro estĆ” escrito, agora Ć© que vou ter o trabalho de burilar, jogar fora muita coisa. Nessa primeira reescrita sĆ³ eu participo. Quando acho que estĆ” pronto, passo para dez, 15 leitores. O editor entra na Ćŗltima fase. Em geral, acato 10% das observaƧƵes das editoras”, explica ele, Ć s voltas, tambĆ©m, com os desdobramentos de sua produĆ§Ć£o, como a exposiĆ§Ć£o “ContaminaƧƵes”, em cartaz no Sesc Ipiranga, em SĆ£o Paulo. Na mostra, o artista visual Roberto Evangelista relĆŖ a instalaĆ§Ć£o que despertou Ruffato para a escrita de “Eles eram muitos cavalos” e cria um caminho entre caixas de sapatos abertas e amontoadas.
O escritor graduado em comunicaĆ§Ć£o social pela UFJF tambĆ©m colhe, ainda, as reaƧƵes Ć exibiĆ§Ć£o de “Redemoinho”, longa-metragem de JosĆ© Luiz Villamarim (de “JustiƧa” e “Amores roubados”), que se mantĆ©m em algumas salas de cinema do paĆs. “‘Redemoinho’ me surpreendeu porque o JosĆ© Luiz Villamarim compreendeu perfeitamente o universo que tinha para trabalhar, e os atores incorporaram perfeitamente aquele ambiente onde estavam. Foi uma felicidade enorme essa leitura”, diz ele, negando-se um crĆtico das transposiƧƵes de seus escritos. “Meu compromisso Ć© a literatura. Tudo o que deriva daĆ nĆ£o me pertence, sĆ£o leituras. Posso gostar mais ou menos como espectador, nĆ£o como autor. NĆ£o entendo os autores que falam: ‘O fulano nĆ£o entendeu meu livro’. O problema foi com o escritor e nĆ£o com o leitor, porque se o livro tem somente uma leitura Ć© um porcaria. Gostaria que cada leitor meu tivesse uma leitura diferente.”