Alma penada
Já nasci muito chata. Fui a neta-brinquedo de uma geração de primos mais velhos que, por terem idade próxima, não tinham convivido tanto com um bebê, ainda mais menina. Como resultado, berrava a plenos – porém minúsculos – pulmões ao mero sinal de desajeito dos braços da molecada, com os cabelos muito pretos e arrepiados, só para tocar ainda mais o terror. Com 1 ano e pouco de idade, ainda centro das atenções dos meus primos, tinha hora que me enchia o saco a meninada toda em cima de mim, me pegando no colo, me apertando as bochechas, me mandando fazer as coisas, e ficava irritadíssima. Minha mãe, tentando aliviar a barra, dizia: “Ô gente, deixa ela um pouquinho!”. Aprendi rápido. Quando começavam a me aporrinhar, gritava do alto de meu meio metro de altura: “Deixa eeeeeeeeeeeeeeeeela! Deixa eeeeeeeeela!”. Insuportável. (Mas virou bordão de família).
Maiorzinha, continuei bem mala. Era uma criança prodiginho, daquelas que dá raiva. Gostava de ler, dançava, tocava instrumentos, era CDF pra caramba, impressionava os adultos com minha desenvoltura e atormentava meu irmão com minhas implicâncias. Um entojo de erê. Cresci, leio quase nunca por prazer, só danço nas oportunidades da vida, toco exclusivamente campainha, não impressiono qualquer pessoa e não moro mais com meu irmão. Uma coisa não mudou, sigo intragável, e trago más notícias: continuarei sendo.
Não pretendo começar a rir de piada racista, machista, homofóbica e classista em mesa de bar, reunião de família ou grupo de WhatsApp. Seguirei espalhando montinho quando amigo meu fizer graça com mulher, seja forçando o chiste de pobre rima entre “volante” e “perigo constante”; seja quando diminuem uma de nós por causa da aparência, da roupa, ou por qualquer atitude que, fosse de um homem, seria louvada. Não é “o” travesti, é “a” travesti. “O” Tammy Gretchen. A propósito, o estado é laico sim, Deus não tem autoridade para legislar sobre direitos. Não vou parar de falar, escrever, e dar a cara a tapa, em toda chance que tiver, por um mundo que tenha mais diversidade, igualdade de direitos e empatia.
E quando eu morrer, depois de uma longa vida de vaso ruim, sob interjeições de alívio dos que como eu, reconhecem minha inaturabilidade…voltarei como alma-penada, fazendo discursos politicamente corretos em pesadelos de reacionários e intolerantes: “Buuuuuuuuuuuu, Bolsonaro não é opiniããããão!” Afinal, sou chata pra diabo.