O crepúsculo dos novos deuses
Oi, gente.
“O legado de Júpiter”, série da Image que teve seu primeiro volume lançado recentemente pela Panini, é a prova de que Mark Millar deve ser o cara mais inteligente da indústria dos quadrinhos desde que Stan Lee criou o Quarteto Fantástico – ou, pelo menos, o mais esperto desde que Todd McFarlane, Jim Lee e outros mais largaram a Marvel para criar a Image, no início dos anos 90. O motivo é simples: ele percebeu que os produtores e estúdios de Hollywood descobriram o filão das adaptações de livros e histórias em quadrinhos para o cinema, e que também poderia faturar o seu (a exemplo da Marvel e DC) criando personagens e séries dos quais teria o controle criativo e os copyrights.
Foi assim que ele se associou a diversas editoras para criar o seu “Millarworld”, em que séries como “O procurado”, “Kick-Ass” e “Kingsman: O Serviço Secreto” já ganharam vida na tela grande. E a lista não para, com o escritor escocês tendo vendido para os estúdios outras ideias suas, como “Crononautas”, “Superior” e a inacreditavelmente apelativa – e subestimada – “Nêmesis”, em que se observa a obsessão de Millar em criar histórias que sejam facilmente transportadas para a sétima arte, engordando os bolsos do sujeito.
Essa “fórmula Millar” é criticada por muitos; afinal, a preocupação em escrever obras “filmáveis” nem sempre rende quadrinhos com histórias bem desenvolvidas ou personagens mais profundos – boa parte deles, afinal, parecem cópias de muitos nomes clássicos da dobradinha Marvel/DC. Mas “O legado de Júpiter” é uma bela exceção, ao mostrar que Mark Millar pode exigir mais dos leitores do que ele normalmente parece imaginar.
A premissa parece simples, a princípio: o que aconteceria se você fosse o filho do Superman e da Mulher-Maravilha e tivesse que seguir os passos deles? O decorrer das cinco primeiras edições, porém, mostram muito mais do que esse questionamento. Há toda uma reflexão entre poder e responsabilidade e a comparação entre os Estados Unidos de hoje e o Império Romano durante o seu período de declínio – não à toa, o “Júpiter” do título da série tanto pode se referir à divindade romana quanto ao Utópico, o super-herói mais poderoso da História e que precisa lidar com a decepção recíproca entre ele e sua prole. Basicamente, o crepúsculo dos novos deuses do século XX.
Mas vamos à história, afinal, que tem início em 1932. Sheldon Sampson é o americano típico das décadas de 1920 e 1930, crente na capacidade dos Estados Unidos se tornarem a nação mais poderosa do mundo e um farol de justiça, liberdade e democracia, mas que a exemplo de tantos outros teve praticamente toda sua fortuna arruinada após o crash da Bolsa de Nova York, em 1929. Ele passa a sonhar e a “conversar” com uma ilha perdida no meio do Oceano Atlântico, que não existe em mapa algum, e por isso reúne o que ainda resta de dinheiro e parte em busca do arquipélago, acompanhado de uns poucos amigos que confiam nas suas palavras.
Sampson e sua turma conseguem encontrar a ilha, que concede super poderes a Sheldon, seu irmão Walter, Grace (sua futura esposa) e demais amigos. Com a convicção de que os seus novos dons devem ser usados para o bem comum, ele assume o nome de Utópico e lidera os primeiros super-heróis do mundo para um período de paz e justiça, eliminando praticamente todos os super-vilões que existem.
A história dá então um salto de pouco mais de oito décadas e chega a 2013, e o mundo não está muito melhor do que outrora. Os Estados Unidos ainda sofrem os efeitos da crise de 2008, e isso coloca o Utópico em posição oposta à de seu irmão, que adotou o codinome Onda Mental. O primeiro acredita que os vigilantes – agora às centenas – devem deixar as soluções políticas e econômicas nas mãos da humanidade, agindo apenas na proteção contra grandes ameaças, enquanto o segundo elabora um plano econômico intrincado com o objetivo de erradicar a pobreza, desigualdade e doenças – a rigor, quase um manifesto comunista.
Para piorar, Sheldon e Grace precisam lidar com o desgosto que sentem pelos seus filhos, Chloe e Brandon, que não parecem interessados em seguir os passos deles e mais dispostos a faturar uma grana com patrocínios e afins. Os primeiros capítulos mostram, porém, um conflito familiar mais profundo. Os filhos sofrem com a pressão de terem como exemplo os dois maiores super-heróis do mundo e não se sentem à altura de manter o legado de seus nomes, ao mesmo tempo em que se ressentem das ausências deles durante a infância. Já o Utópico e Lady Liberdade se mostram decepcionados ao verem que seus filhos evitam a todo custo se envolverem em combates – no máximo realizando ações heróicas estúpidas – e se culpam por terem sido tão ausentes no passado.
Além dos conflitos familiares, “O legado de Júpiter” é marcado por grandes reviravoltas, traições e revelações que mostram um dos trabalhos mais interessantes de Mark Millar em muito tempo, contando ainda com o talento de um dos cinco melhores ilustradores da atualidade, Frank Quitely (“Novos X-Men”, “All-Star Superman”), que continua a impressionar com o seu traço, fino, elegante, detalhista e capaz de uma noção de profundidade de campo raramente vista nas HQs. É o tipo de história em quadrinhos que o fã de cultura pop deve conferir o quanto antes.
Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.