Impeachment e riscos à democracia
Afinal, quais são os motivos alegados pelos setores que querem o impeachment da presidente Dilma Rousseff? No pedido que tramita no Congresso Nacional, o argumento central utilizado relaciona-se com as chamadas “pedaladas fiscais” – pagamentos feitos pelo Governo com adiantamentos de recursos provenientes de bancos públicos (que depois foram ressarcidos e remunerados por isso).
Desde a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, todos os presidentes – a começar por Fernando Henrique Cardoso, do PSDB – utilizaram-se deste expediente. E todos tiveram suas contas aprovadas sem problemas pelo Congresso, antecedidas de pareceres favoráveis do Tribunal de Contas da União (TCU). Repentinamente, a posição do TCU mudou, no meio do jogo, e ele passou a considerar que a prática é ilegal. Mas quem vota a aprovação das contas é o Congresso, e ele ainda não o fez.
Resumindo: Dilma não teve suas contas avaliadas pelo Congresso e se tenta tirá-la da Presidência com base numa prática que todos os presidentes anteriores utilizaram sem nenhuma consequência dramática. E mais: que vários governadores da oposição continuaram utilizando até recentemente.
Outro motivo alegado pela oposição – e que é uma das bases centrais da ação que tramita no TSE, pedindo a cassação da chapa Dilma-Temer – é o de que financiadores da campanha presidencial vitoriosa fizeram doações provenientes de desvios de recursos públicos. Mas as maiores empreiteiras do país, investigadas na operação Lava Jato, fizeram igualmente generosas doações à campanha de Aécio Neves. E foram também financiadoras da maioria dos deputados federais que integram a comissão do impeachment.
Quer dizer que as empreiteiras têm um cofre de dinheiro limpo, que doaram a Aécio e muitos outros candidatos, e um cofre com dinheiro sujo, exclusivamente para Dilma? O argumento não faz o menor sentido. Se Dilma foi beneficiária de recursos por causa de algum esquema, por que as empresas fizeram grandes doações também à oposição? Simples: essas empresas doam a qualquer um que tenha chances de vencer e que se disponha a receber seus recursos. E Dilma era favorita para vencer em 2014.
Por fim, nos últimos dias, a partir da delação de Delcídio do Amaral e de uma das interpretações possíveis (dentre muitas outras) da conversa telefônica grampeada entre Lula e Dilma, entrou em cena o argumento de que a presidente tenta interferir nas investigações. Curioso: se for verdadeira a delação de Delcídio (até o momento, é só a palavra do senador, não se sabe se existem comprovações de que as informações são verídicas), ela compromete toda a linha sucessória caso Dilma seja afastada (Temer, Eduardo Cunha, Renan) e compromete também Aécio Neves, candidato derrotado nas urnas em 2014.
Neste momento, a tentativa de impeachment tem que ser vista como o que de fato ela é: jogo político bruto, num momento de fragilidade do Governo, com o objetivo de tirar do poder uma presidente eleita com 54 milhões de votos e contra quem, até o momento, não há nenhuma evidência de que tenha cometido crime de responsabilidade. Não há, nesse processo atual, nenhuma semelhança com o impeachment de Collor, em que eram abundantes as provas contra o ex-presidente. Há muito mais semelhanças com as iniciativas golpistas de 1954 e de 1964, das quais pessoal e politicamente eu quero total distância.
Como escrevi há poucos dias numa rede social, quando daqui a alguns anos a história vier nos inquirir sobre onde estávamos e o que fazíamos em 2016, pretendo ter a consciência tranquila de que não conspirei contra a democracia brasileira. Não era nascido em 54, mas certamente eu não estaria entre os falsos moralistas, que, bradando a “Tribuna da Imprensa” e “O Globo”, levaram ao suicídio de Getúlio. Não era nascido em 64, mas certamente não estaria ao lado de senhorinhas da alta sociedade na “Marcha da Família com Deus” (sic), que incentivavam um golpe militar terrível, que ceifou vidas, liberdades e direitos por 21 anos (com apoio dessa mesma mídia de agora). Quero apenas respeito ao resultado das urnas: se não cometeu crime, qualquer presidente, popular ou impopular, deve terminar o mandato que o povo lhe deu.