A lição do papeleiro


Por PERCIVAL PUGGINA, ARQUITETO, EMPRESÁRIO E ESCRITOR

31/07/2016 às 07h00

A Rua Salvador França, em Porto Alegre, forma uma rampa acentuada ao se aproximar da Avenida Protásio Alves. Há poucos dias, em hora de tráfego intenso, eu andava por ali, lomba acima. A lentidão do trânsito evidenciava haver, adiante, algum obstáculo na pista. De fato, pouco além, avistei um carrinho de papeleiro, muito carregado e com volumosos excessos laterais. A carga era tão desproporcional que me interessei em ver como se fazia a tração de todo aquele peso. Um cavalo? Dois homens? Não. Era um homem só, e bem magro. Puxava sua carga caminhando de costas, fazendo o maior uso possível do próprio peso, jogando-se para trás.

Ao ultrapassá-lo, senti vontade de parar, descer e expressar àquele ser humano meu reconhecimento ao valor moral que transmitia. Mas seria impraticável em meio ao tráfego. Decidi que o faria aqui, narrando o fato e traduzindo em palavras a silenciosa lição que proporcionava.

A mesa do papeleiro é pobre e pouca. Há frestas em sua insalubre moradia. Agasalho escasso, extenuante o trabalho. Não conhece férias e não recebe hora extra. Bem perto de onde mora está o traficante com dinheiro no bolso e correntes de ouro no pescoço. Se é de justiça tratar desigualmente os desiguais, a tolerância e a indulgência, em nome da luta de classes, para com os crimes praticados por indivíduos supostamente pobres são uma ofensa ao papeleiro da Salvador França. Todo modo de ver a lei penal como lei do “opressor” contra o “oprimido”, todo garantismo que assumidamente desprotege a sociedade são ofensivos ao seu trabalho honesto.

Assumindo como ganha-pão uma tarefa de tração animal, ele ensina o quanto a vida, mesmo comprometida diariamente com penosa rotina, pode ser dura sem deixar de ser humana e digna. Enquanto, naquele dia, arrastava sua carga ladeira acima, o papeleiro esbofeteava, sem saber, a face de cada corrupto e de cada corruptor. Ensinava a quantos fazem e aplicam a lei que a pobreza a merecer proteção social e institucional é a pobreza do homem bom, nunca – nunca! – por si mesma, a pobreza do malfeitor, do traficante, do ladrão, do homicida, do estuprador (que até estes voltam rapidamente às ruas!). Degenerado é degenerado, criminoso é criminoso, independentemente do extrato de renda. O lugar de quem vive do crime é a cadeia, senhores.

Por isso, falando em nome de muitos, de poucos ou apenas no meu próprio, gostaria de conhecer a natureza do delito que certos homens da lei nos imputam, leitor. Ao dar liberdade a quem tem que estar preso, esses falsos justiceiros condenam todos os demais à insegurança e à restrição da liberdade. Escrevam o que pensam, senhores! Sustentem suas teses marxistas abertamente nos jornais! Venham à luz do dia com suas doutrinas! Não se escondam nas páginas dos processos, nas dissertações acadêmicas e nos conciliábulos dos que pensam igual! Afinal, desarmados pelas exigências que cercam a posse de qualquer arma, agora estamos encarcerados por grades de proteção e temos as mãos contidas pelas algemas da impotência cívica.

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