População de rua
Mário Sérgio Ribeiro
Psiquiatra e professor aposentado da UFJF
“A saída brasileira (em especial, a juiz-forana) para a questão da assistência psiquiátrica centrada nas instituições hospitalares terminou por nos conduzir a uma replicação da situação vivida pelos americanos há mais de três décadas”
Artigo publicado na Tribuna de Minas de 8/12/2016 coloca em discussão a situação dos “quase 900 em situação de rua” em Juiz de Fora e a “necessidade de reforma urbana”, ainda que o texto que descreve o “diagnóstico” não dê efetiva conta das razões socioambientais que subjazem aos “motivos para estarem na rua”.
Há quase duas décadas, o colega Uriel Heckert concluiu uma tese de doutoramento em que fez uma avaliação dos problemas mentais que acometiam as pessoas que então viviam em Juiz de Fora na mesma condição: o número de pessoas “em situação de rua” à época não chegava a um décimo do agora identificado! Não se pode, portanto, deixar de lado um questionamento acerca dos processos supraindividuais que contribuíram para este aumento de mais de 1000% em menos de duas décadas.
Um jornal de cidade vizinha a Juiz de Fora publicou em março de 1981, numa redação hoje considerada inaceitável, texto que questionava a presença nas ruas da cidade de um “crioulo” que estaria abusando “da caridade alheia”; no mesmo jornal, outro artigo expressava a opinião do autor sobre as diferenças entre o “deficiente mental” e os “loucos” e afirmava que, “para uns, existem as escolas especializadas, enquanto que, para os outros, criaram-se os hospitais psiquiátricos ou manicômios…”. No mês anterior (fevereiro de 1981), o “Jornal do Brasil” apresentou um levantamento semelhante ao divulgado no dia 8 pela Tribuna de Minas, mas realizado na cidade de Nova York (Estados Unidos). Segundo o artigo, “segundo a Sociedade de Serviços Comunitários, o número de mendigos na cidade (Nova York) já passa dos 36 mil, dos quais 18 mil são drogados, alcoólatras e mendigos propriamente ditos. Os outros 18 mil são homens e mulheres que receberam alta de hospitais psiquiátricos públicos quando estes fecharam suas portas por falta de ajuda financeira do Governo…”
Em artigo acadêmico apresentado em congressos psiquiátricos realizados em 1981 – momento em que a questão da necessária reforma psiquiátrica era amplamente discutida em nosso meio -, e que foi posteriormente publicado, eu concluía com a seguinte afirmação: “Acredito que a analogia com nossas dificuldades não seja de todo imperfeita, porém espero que saibamos encontrar aqui uma saída que não seja apenas uma rima com a situação psiquiátrica americana, mas uma verdadeira solução”.
Hoje, concluo estes breves comentários dizendo que uma avaliação mais profunda dos sujeitos em situação de rua descritos no levantamento do Comitê Pop Rua propiciará um suporte à tese de que a saída brasileira (em especial, a juiz-forana) para a questão da assistência psiquiátrica centrada nas instituições hospitalares terminou por nos conduzir a uma replicação da situação vivida pelos americanos há mais de três décadas.