Feminicídios em Minas levam, em média, 300 dias para julgamento

Segundo o Conselho Nacional de Justiça, tempo médio para primeiro julgamento de feminicídio em Minas Gerais é de 300 dias. Prazo sobe para 342 dias para a primeira baixa


Por Pâmela Costa

01/06/2025 às 07h00- Atualizada 02/06/2025 às 07h57

Depois que decidiu se separar do marido, a biomédica Miquéias Nunes de Oliveira, 33 anos, recebeu flores, pedido de mais uma chance e declarações do homem que dizia não saber viver sem ela. Ao matá-la, no dia 12 de março de 2024, ele teria agido de forma a impedir que ela continuasse sua vida sem ele. Com a conclusão do inquérito que investigou o caso, exatamente uma semana após o crime, o assassinato de Keia se junta agora aos 1.496 processos de feminicídios que aguardam, em média, 300 dias até o primeiro julgamento em Minas Gerais, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os dados são de abril. 

Conforme o CNJ, os julgamentos desse tipo de crime registrados no Brasil atingiram um crescimento de 225% em um período de quatro anos, entre 2020 a 2024. Em números, a evolução aparece em uma escalada gradativa percebida em todos os anos. Já em Minas Gerais, embora seja possível afirmar que houve um crescimento quando considerado esse mesmo período, ele foi mais tímido. O ápice de casos julgados se deu em 2023, com 1.238 deliberações. No ano seguinte, as taxas mineiras regressam para 1.127 julgamentos, não superando o ano anterior.

Feminicídio: mulheres assassinadas em razão do gênero

Sancionada em 9 de março de 2015, como resultado da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso Nacional que investigou a violência contra as mulheres, a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015) incluiu o feminicídio como uma qualificadora do crime de homicídio no Código Penal. A norma reconhece que o assassinato de mulheres pode ocorrer em razão da condição de sexo feminino, especialmente em contextos de violência doméstica e familiar ou em situações de menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Em 2024, uma nova legislação relacionada ao tema estabeleceu o endurecimento das penas aplicadas ao feminicídio. No entanto, como toda mudança legislativa, os efeitos práticos não são automáticos. Embora as medidas possam ser aplicadas independentemente de requerimento do Ministério Público, sua efetivação está condicionada à análise do Judiciário. Ainda assim, o maior desafio permanece: a morosidade nos julgamentos que repercute em uma demanda reprimida.

O feminicídio de Keia, que ocorreu em Ibirité, na região metropolitana de Belo Horizonte. Segundo dados do CNJ em 2025, enfrenta uma fila processual com taxa de congestionamento superior a 90%. Isso evidencia um gargalo no sistema mineiro que repercute também na vida das famílias. Para a doutora em Sociologia e coordenadora do grupo de estudos e pesquisa Geni – Gênero e Interdisciplinaridade – da Universidade Federal de Juiz de Fora, Célia Arribas, a demora pode significar a revitimização da família, pais e filhos das vítimas desses crimes.

Keia tinha três irmãos, a mais nova com 17 anos, Maíza de 30 e com quem a reportagem conversou, e o mais velho, com 37 anos e que tinha três filhos. Keia era tia, papel tão importante, que, entre os irmãos, todos passaram a se chamar de tios desde que o primeiro filho dele nasceu há 15 anos. Para Maíza Oliveira, irmã de Keia, “ela era uma pessoa que sempre sorria”. Do interior de Minas, ela nasceu no hospital de Manhuaçu e cresceu em Simonésia, duas cidades bem próximas. Aos 22 foi morar na capital, na região metropolitana de Belo Horizonte. Dona de olhos claros marcantes, ela era formada em biomedicina, esteticista, especialista em pós operatórios e terapeuta alternativa em ozonioterapia. Keia trabalhava em uma clínica na Avenida Boa Esperança, no Bairro Várzea, em Ibirité – local em que foi assassinada.

É difícil falar tudo que ela é e tudo que ela foi para nós. Ela sempre esteve preocupada em ajudar nossos pais e em realizar sonhos da minha mãe. Nossa fé nos conforta que hoje ela está em um lugar melhor, e a gente se apega a isso. Eu não quero que isso aconteça com nenhuma família mais. Nem mesmo para ele. Ele não imagina o que causou para nossa família”, desabafa Maíza, que, além de sentir o luto, tem buscado por justiça. A expectativa é que o ex-cunhado, preso em flagrante pelo assassinato, seja condenado o quanto antes e que se mantenha encarcerado enquanto aguarda o julgamento. “Eu espero que ele pague pelo o que fez. Nada vai curar nossa dor, mas vai amenizar, porque vamos saber que a justiça está sendo feita”, relatou Maíza à Tribuna.

Ciclo da violência e quem são os feminicidas

Antes do dia do assassinato que vitimou Keia, o suspeito de ser o autor do crime mantinha contato com ela e com sua família. Eles haviam se casado durante a pandemia e, no decorrer de quase cinco anos de relacionamento, o homem, que já havia a traído, passava uma visão de suposta indiferença. “Ele falava que se separasse da Keia, no outro dia arrumava outra, ele passava a visão de que não sofria ou chorava”, conta a irmã, sobre esse comportamento ter mudado quando veio o desejo de separação por parte de Keia.

“Ele não ameaçava, mas era insistente quanto a reatar o relacionamento. Mandava mensagem, chorava e tinha atitudes que antes da separação nunca teve”, conta Maíza, sobre um dos episódios em que o ex-cunhado marcou uma limpeza de pele com Keia, no local em que ela trabalhava e onde ele frequentemente ia mesmo após a separação. A persistência reiterada, que já se configura como um tipo de violência, fez com que a vítima já tivesse chorado relatando não aguentar mais a situação de perseguição que se prolongava.

O ciclo da violência, conforme a socióloga explica, é composto por atos violentos e/ou discussões, que, após serem realizadas, o agressor volta, se mostra arrependido e tenta reatar laços, presenteia, é romântico e uma série de comportamentos que, logo em seguida, mudam novamente quando o laço é reconstruído. A partir dai, vem mais forte o novo movimento de violência verbal ou até física, que vai se perpetuando. Além da dificuldade de reconhecimento em se ver como parte deste ciclo, do outro lado, o parceiro tenta controlar cada vez mais a vítima. 

O que, a princípio, não parecia simbolizar risco físico – uma vez que, conforme Maíza, o homem nunca havia sido violento – já apresentava indícios do que pode ser qualificado como ciclo da violência, explicado por Célia Arribas. A forma como os homens geralmente são educados é um grande problema. “A masculinidade se permite ir atrás dos seus desejos, das suas vontades, como algo naturalizado”, comenta, muitas vezes em detrimento da vontade da mulher. “Não necessariamente para reatar, às vezes o feminicídio vem de um outro motivo, mas geralmente é nesse histórico de violência e de sentimentos de posse, de ciúme, que a coisa acontece”.

Conforme alguns levantamentos como o Atlas da Violência e Mapa da Violência, a maior parte dos homens que cometem feminicídio são companheiros e ex-companheiros das vítimas, ou seja, parceiros íntimos. Enquanto esses estudos demonstram que, por um lado, há um padrão dos agressores em relação a parentesco, por outro a dificuldade de identificação dos feminicidas também se dá pelas suas relações sociais. 

“Às vezes, pode ser alguém lido como bom pai de família, um bom trabalhador e uma pessoa que tem amigos que gostam dele. Esse perfil não é um perfil daquele comum que a gente espera, por exemplo, de uma violência urbana ou algo assim. Então, a gente nunca sabe direito de onde pode vir. A gente não tem muito esse perfil, porque, na verdade, é um fenômeno que atravessa todas as classes, todas as raças. Então, é difícil também identificar de cara que o sujeito vai praticar um feminicídio ou uma violência de outras formas também”, observa Célia.

Enfrentamento ao feminicídio deve ser trabalhado da escola ao judiciário

A luta contra o feminicídio começa em casa, passa pela escola, pelos três poderes e por todas as instâncias que atravessam a vida social, é o que explica a socióloga sobre o caminho da prevenção a ser construído. “Eu acho que isso passa pelas escolas, pela mídia, pelas igrejas, pelas discussões familiares. Como são violências que atravessam todas as dimensões institucionais da nossa vida, elas precisam estar presentes em todos os lugares.”

Outros aspectos citados por Célia tratam do orçamento para aumentar a quantidade de delegacias especializadas e casas de abrigo para mulheres, atendimento psicossocial gratuito e qualificação continuada de profissionais envolvidos no sistema judiciário. “Certamente o judiciário e todos os operadores do direito precisam de mais qualificação e mais sensibilização dessa dimensão, mas eu acho que isso também passa pelas escolas”, finaliza. 

Afim de sanar essa demanda por um judiciário também mais preparado para receber casos de violência contra a mulher, inclusive de feminicídios, é que em 2021 foi criado o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero pelo CNJ. A presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB/JF, Gabriela Drumond, explicou como isso repercute na condução dos processos desses crimes.

Protocolo de gênero passa a ser instrumento obrigatório para judiciário

“O protocolo é uma forma de auxiliar e instruir magistrados, promotores, servidores da justiça, a própria advocacia e todos aqueles que lidam com o judiciário, sobre a maneira de agir em casos em que existe uma mulher como parte”, esclarece Gabriela sobre o papel do documento. Nesse sentido, ele traz à baila a diferenciação do ser mulher e como as estruturas machistas repercutem em todos os aspectos da sociedade.

“O Poder Judiciário deve ter a capacidade de compreender como são constituídas socialmente as desigualdades e hierarquias entre as pessoas, e como essas diferenças estão diretamente relacionadas à violência de gênero. No dia a dia das unidades judiciárias, deve-se levar em consideração que a violência afeta de maneira e intensidades diferentes as mulheres negras, pessoas com deficiência, indígenas, quilombolas, idosas e LGBTQIA+. As mulheres são plurais”, diz trecho do protocolo. 

A partir dessas considerações, o documento busca elucidar as relações de gênero em todas as esferas e seu uso se tornou obrigatório em março de 2023. Contudo, a advogada percebe que no dia a dia das ações judiciais ainda existe uma responsabilização da mulher pelas atitudes dos homens. Em um movimento em que há os instrumentos necessários, mas falta a plenitude de sua prática, um caminho são cursos de capacitação, palestras que incentivam o uso de protocolo e a responsabilização de servidores que não o utilizarem. Gabriela destaca que ele é de utilidade para outros setores sociais, como por exemplo para a própria Polícia Militar.

Julgamentos mais céleres funcionam como resposta à sociedade

Apesar do protocolo caminhar rumo a um judiciário mais justo e disponibilizar meios de a justiça efetivar seu trabalho, a demora dos julgamentos de casos contra a mulher, como de feminicídios, continua sendo um prolongamento do luto à família e alimenta a sensação de impunidade na sociedade. É o que comenta Gabriela, a medida em que expõe que a sobrecarga da justiça se estende também para outras áreas além da criminal e que o protocolo serve para encurtar esse caminho, de modo a tornar a justiça mais célere.

“A gente sabe que quanto mais demora um julgamento, mais existe aquele anseio da sociedade, da família e de todos que estão à espera que a justiça seja feita”, destaca a advogada, a medida em que comenta sobre a sensação de impunidade que, muitas vezes, por ser encarada como um incentivo para que esses crimes sejam cometidos. O Estado, nesse sentido, tem um papel fundamental, como o de aumentar o número de profissionais disponíveis para os julgamentos.

Ela cita uma lei estadual que durou apenas durante o período da pandemia e que, mesmo não estando mais em vigor, permite a criação de uma cultura que deve ser incentivada. Nela, síndicos de condomínios tinham a obrigação legal de denunciar casos de violência doméstica que ocorressem nos prédios, o que subverte e traz a máxima: em briga de marido e mulher deve-se, sim, meter a colher. “Se aquilo é noticiado para as autoridades policiais, a gente consegue evitar danos maiores”, finaliza.

 

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Tópicos: CNJ / feminicídio

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