Tribuna estreia série com tetraplégico que desafia lutador Alex Cowboy no 10º TR Fight
Vítima de um acidente que o deixou tetraplégico aos 16 anos, Gustavo Saleme é o primeiro entrevistado da série “Incríveis”. Através do muay thai, ele supera as adversidade, se fortalece e desafiou ninguém menos que Alex Cowboy para uma luta exibição no 10º TR Fight neste sábado
“Se a vida te der limões, faça uma limonada”. O antigo ditado sempre serve para motivar as pessoas a encarar as dificuldades da vida, os desafios, com aquilo que se tem às mãos. Mas e quando a vida te arranca os limões e tudo mais que se possa imaginar? É assim que se poderia imaginar, há pouco mais de duas décadas, a vida de Gustavo Saleme que, aos 16 anos, em plena adolescência, precisou encarar a tragédia de ficar tetraplégico em decorrência de um acidente de carro.
Movimentando apenas os olhos, desenganado por um médico que disse à sua mãe que “pior que seu destino só a morte”, ele partiu do nada absoluto para, mesmo sem limões, mostrar que sua vida poderia render muitas e muitas limonadas. A prova dessa vontade de viver, de não se deixar levar pelo vitimismo e a prostração, poderá ser conferida na noite deste sábado na cidade de Três Rio (RJ), quando Gustavo, hoje com 38 anos, subirá ao octógono na 10ª edição do TR Fight para realizar uma exibição de muay thai contra o lutador Alex Cowboy, um dos melhores ranqueados do peso meio-médio no UFC.
De acordo com o treinador de Cowboy, André Tadeu, serão dois rounds de cinco minutos em que os dois irão trocar alguns golpes para mostrar a força de superação de Gustavo, considerado por ele um exemplo. “Não tenho palavras para falar sobre o Gustavo, ele é um verdadeiro herói. O Alex está muito animado e ansioso para conhecê-lo.”
O ‘se colar, colou’ que realmente colou
Assim como as tragédias não têm hora ou local para acontecer, as boas notícias podem vir na velocidade de uma troca de mensagens pela internet. Foi Gustavo Saleme, que treina muay-thai há cerca de oito meses, quem procurou Alex Cowboy há pouco mais de duas semanas para sugerir que gravassem em vídeo um treinamento que servisse de inspiração para outros cadeirantes. A mensagem publicada no Instagram teve resposta ainda melhor, com Cowboy e André sugerindo que eles fizessem uma exibição durante o TR Fight. “Não tenho palavras para falar sobre o Gustavo, ele é um verdadeiro herói. O Alex está muito animado e ansioso para conhecê-lo”, André Tadeu, treinador de Alex Cowboy e organizador do TR Fight.
Para valorizar ainda mais o evento, Gustavo gravou um vídeo no Instagram “desafiando” Alex Cowboy para o combate, com o lutador publicando outro vídeo em que topava o desafio. Só no primeiro dia, foram mais de duas mil visualizações. “Foi assustador, mas muito legal ter toda essa repercussão”, diz Gustavo. “É completamente estranho, surreal, me imaginar no octógono, afinal você vê cadeirante pedalando, fazendo outras atividades físicas, mas não isso.”
O vídeo teve efeito não apenas entre os internautas em geral. “A primeira reação do Cowboy ao assistir ao vídeo foi ficar com os olhos cheios de lágrimas, ver como o Gustavo abraçou o esporte e mudou sua vida. Queremos mostrar para a população de Três Rios que o cadeirante pode fazer atividade física, ser feliz, e não há maior prova disso que o Gustavo”, diz André Tadeu.
Depois do acidente, uma nova vida
O caminho para esse momento “surreal”, porém, foi longo, doloroso, muitos diriam que cruel. A vida de Gustavo Saleme mudou de forma radical em 1995, quando sofreu o acidente de carro que o deixou tetraplégico, desenganado pelo médico e movimentando apenas os olhos. Tudo isso aos 16 anos de idade, em plena adolescência.
Foram três meses de recuperação no hospital antes de poder voltar para casa e mergulhar na fisioterapia. Ele e o fisioterapeuta notaram que havia um pequeno esboço de movimentação nos braços: não era muito, mas para quem tinha perdido tanta coisa já era algo a se agarrar. E foi o que Gustavo fez.
“Comecei a malhar logo que saí do hospital. O fisioterapeuta colocava os pesos nas minhas mãos e dizia ‘se vira’. Dava vontade de matar o cara (risos), mas no outro dia ele voltava e eu continuava”, relembra. Foi assim durante um ano inteiro, de segunda a sábado, sentindo a evolução diária, recuperando alguns movimentos gradativamente.
Com o trabalho de fortalecimento concluído, dedicou-se exclusivamente à fisioterapia, mas desde então os resultados já eram visíveis. “Pude voltar a viver normalmente. Passei a dirigir, entro e saio do carro sozinho, não preciso que me tirem e coloquem na cama, consigo varrer a casa. Chegou um momento em que a fisioterapia não era mais necessária, ela passou a ser as coisas que faço no cotidiano”, afirma.
Mais magro e forte
Mas Gustavo não fica apenas nas coisas mais simples. Ele já voou de parapente, participou de rali e também correu em autódromo. “Posso fazer tudo, mas de forma diferente”, diz. Foi assim que ele iniciou, há oito meses, as aulas de muay thai com o professor Johnnatah Vital, que ele chama de “personal fight”. Tudo começou com uma brincadeira, ele me chamou para treinar e eu disse ‘vamos!’, e desde então ele vem duas ou três vezes por semana até minha casa para treinarmos”, diz, acrescentando que as atividades se tornaram diárias nas últimas semanas para fazer bonito no TR Fight.
E Johnnatah garante que não dá moleza para o aluno, sendo exigente dentro das limitações de Gustavo. “Eu falei pra ele que iria mover músculos que não imaginava (risos), e foi o que fiz. Não é apenas soco, a luta em si, envolve malhação, alongamento, aeróbica. Ele ficou até mais magro, no início sentia dor quando batia, agora não mais.”
O resultado, segundo Gustavo, é visível. “Não tenho movimentos nos dedos, mas estou recuperando lentamente a musculatura dos antebraços. Faz muito bem ver que estou ganhando movimentos, massa muscular. Em casa mesmo não uso mais a cadeira de rodas elétrica, e sim a manual. A outra fica apenas para a rua.”
Ajudando quem precisa
Gustavo não pensa apenas em si. Ele criou em 2011 a iniciativa Cadeirantes em Ação, que tem por objetivo doar cadeiras de rodas para quem não tem condições de comprar uma. Mesmo sendo um empreendimento solitário, ele já conseguiu melhorar a vida de mais de dez pessoas por meio de recursos financeiros próprios ou de parentes e amigos. O projeto, que também tem página no Facebook, Instagram e YouTube, ainda denuncia locais sem acessos para cadeirantes e motoristas que estacionam em vagas destinadas a pessoas com deficiência.
“Eu sei como é difícil ficar sem cadeira quando a minha estraga, então imagino como é a vida das pessoas que não têm condições de adquirir uma. Quando posso adquirir uma para doar procuro saber quem precisa, e muitas vezes aparecem pedindo, aí corremos atrás.”
Mesmo agora, tanto tempo depois, Gustavo cria os próprios limões para ter na sua vida a limonada que merece.