Cineasta Marcos Pimentel fala sobre ‘Amanhã’ e o papel do documentário
Documentarista fala sobre sua primeira obra de ficção e revela sua participação em projetos futuros envolvendo Juiz de Fora

“Você vai voltar amanhã?”. É essa a pergunta que ficou na cabeça do cineasta juiz-forano Marcos Pimentel durante 20 anos, quando foi embora das filmagens que fazia na barragem Santa Lúcia, em Belo Horizonte, que marcava a divisão de poucos metros entre uma favela e um bairro de classe média. A frase foi dita por um menino, o Cristian, que fazia parte de certo “experimento” do documentarista, em que filmou, durante dois finais de semana, as brincadeiras do menino e de sua irmã com outra criança vinda de uma realidade bem diferente. Em “Amanhã”, filme resultado das filmagens feitas em 2002 e das imagens de retorno, em 2022, ele conta a ação íntima da política brasileira na vida dessas três pessoas. Um filme cheio de desencontros e que, como o cineasta define, tinha tudo para naufragar. Ele esteve presente na sessão da última terça-feira (27) no Mercado Municipal, após o mês em homenagem ao seu trabalho, e reflete sobre o papel de um documentarista, seus próximos passos , incluindo a sua primeira obra de ficção, que deve ser lançada em junho, a importância de Juiz de Fora em sua vida e os projetos envolvendo a cidade.
Quando Pimentel começou a filmagem dessa sua obra, que chegou ao público em 2023, ele não sabia que faria esse retorno para contar o que aconteceu com aquelas crianças. Na época, usou as imagens para outro projeto, mas o que viu, naquelas brincadeiras, continuou habitando seu imaginário. “Acreditei nesse projeto durante 20 anos.” Ele decidiu retornar em 2022, para reencontrar aquelas pessoas (agora adultos), entendendo que o momento era bastante emblemático. “2002 é a chegada do Lula para o primeiro mandato e 2022 é a volta dele para o terceiro. Ao longo desse tempo, muita coisa aconteceu no país, e essas coisas impactaram bastante a história dos três.”
Foi justamente na sua mudança de Juiz de Fora para Belo Horizonte que essa história chamou sua atenção. “Comecei a me perder pela cidade e tentar encontrar partes de Belo Horizonte que me interessavam, até que cheguei a esse lugar. E aí comecei a perceber a pouca interação entre esses dois lados. O lado da favela só ficava na parte dela, onde tinha uns campinhos, e na parte de classe média alta, as pessoas iam fazer caminhada no entorno do lado e faziam em meia lua, como se não pudessem passar pra lá. Cada lado tinha uma linha imaginária. E eu pensei: que louco a gente ter isso na virada do milênio.” Foi então que pediu para as famílias dessas duas crianças, indicadas pela escola ou por líderes comunitários, para que os encontros fossem feitos.
O cineasta ainda explicou que o projeto inicial se voltava para duas crianças, mas no meio das filmagens um deles sumiu, e a irmã apareceu. Viraram três. “E eles ficaram os melhores amigos da vida, porque criança não tem preconceito, é a gente, enquanto sociedade, que introjeta neles. Eu apostei no tempo, no que podia acontecer, porque eles tinham muita certeza que a partir do momento em que eles se conheceram seriam melhores amigos da vida”, afirma, apesar de nunca ter procurado o Cristian, a Júlia e o José Thomaz até voltar. “O resultado é a cara da nossa sociedade, é um filme que fala muito sobre os últimos 20 anos da história do país. (…) É um filme bem político, política está em todo lugar, e é bem forte entender o que aconteceu com eles, mas também com a gente, enquanto sociedade, nesse período”, diz.
O tempo e a política

Em “Amanhã”, o tempo e a política são assuntos muito fundamentais — e, não por acaso, são esses tópicos que se repetem em suas produções, incluindo “Pele” (2021), “Os ossos da saudade” (2021) e “Fé e fúria” (2019). “Meus filmes, de modo geral, são muito silenciosos, têm uma observação bem contemplativa e discreta. Fiz muitos filmes em que inclusive não tem diálogo nenhum, palavra nenhuma, e boa parte desses filmes estão muito ligados a tempo e memória. E, de uns anos para cá, acho que a questão política acabou me puxando completamente.” Para ele, a política que lhe interessa retratar não é a dos partidos, mas o ato político, o dia a dia, o pensar no que está acontecendo no entorno. “O cinema documentário é uma forma bem potente de observar o mundo e de dividir com as pessoas a minha visão”, define.
Quando o cineasta foi confrontar as imagens que fez em diferentes décadas para “Amanhã”, inclusive, teve que encarar também a mudança que o atingiu ao longo dos anos. “Eu mudei muito de lá para cá. Por sorte, o documentário, que naquele momento era uma paixão, virou parte intrínseca de mim. Não consigo dissociar minha vida do cinema de documentário. Fiz muitos filmes depois disso, séries, vários projetos realizados. E um orgulho danado de ter voltado a esse projeto, que ficou adormecido, mas que eu precisava olhar de novo.” Em seu primeiro trabalho de ficção, “O silêncio das ostras”, que é um ponto à parte da sua curva de trabalho e que deve chegar a Juiz de Fora para a estreia, ele também pretende manter esses temas, mas por outro viés — dessa vez, falando dos efeitos de uma mineradora.
Futuro da(s) cidade(s)

Também como personagem do filme, ele pôde se aproximar de retratar as suas grandes preocupações urbanísticas. Não por acaso, “Amanhã” foi discutido por faculdades de arquitetura e traduz muitos dos desafios de se viver no meio urbano. Mas Belo Horizonte está longe de ser o único lugar que o cineasta quer retratar. Marcos conta que acredita que as histórias estão em todos os lugares, e que o maior desafio é encontrar uma forma de contar isso que consiga extrair o universal do local. “O que tem de mais lindo é a singularidade, os filmes pessoais que têm a ver com realidades locais e que encontram formas de comunicar isso que são universais. Acho isso fantástico”, conta.
Ele também conta do seu passado para contar o futuro da cidade que, afinal, é a sua — mesmo após percorrer o mundo inteiro e ganhar mais de 90 prêmios em festivais. “Eu precisei sair de Juiz de Fora. Durante muitos anos, a realidade era de expulsar as pessoas que queriam viver de cinema aqui.” Com o polo audiovisual, ele espera que isso se torne outra escolha – e que os cineastas do futuro possam decidir se querem fazer cinema aqui ou em outro lugar. Pensando nisso que ele vai colaborar com a escola de audiovisual desenvolvida pelo polo, ajudando a formar novos profissionais. Ainda sem poder contar muito, ele garante que terá esse envolvimento e promete voltar com novos projetos. E finaliza: “Histórias são feitas de sentimentos. Essa é a matéria-prima, e eu tenho que fazer isso por meio de imagens e sons. (…) Importa mais que o tema em si, a forma que se conta. O documentário é um gênero que rompe muitas barreiras e abre portas. Eu quero muito falar das coisas que estão acontecendo no meu tempo e nos lugares que eu habito. E aquilo começa a martelar em mim até virar uma necessidade”.
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