O 2ยบ dia da Mostra Regional do Festival Primeiro Plano
Os sete curtas trazem mรบltiplos olhares sobre Juiz de Fora, crรญticas polรญticas e experimentaรงรตes autorais
Qual serรก a trilha urbana de Juiz de Fora? O curta-documentรกrio “Diรกlogos em silรชncio”, dirigido por Ana Carolina Mendes, faz uma montagem remetendo a artes de protesto que tomam pouco a pouco as ruas da cidade. Lambe-lambe, stencil e graffiti sรฃo os personagens desse filme, enquanto imagens corriqueiras de Juiz de Fora, involuntariamente, seguem o tom de protesto das ainda poucas marcas nos muros.
Os entrevistados sรฃo artistas de rua que falam sobre a cidade como plataforma para criaรงรฃo e suporte para a arte que criam, sempre em movimento e sofrendo intervenรงรตes. A comunicaรงรฃo รฉ evidenciada em seu molde mais subversivo “sem passar por um edital”, conclui uma das falas. Um dos takes รฉ exatamente do paredรฃo branco, com letras em vermelho dizendo: “o afeto รฉ revolucionรกrio”, imagem que circulou pela internet logo que foi grafitada por aqui. Essa รฉ a mensagem principal, de como essas trรชs linguagens criam um afeto em quem vive no centro urbano, se deparando cotidianamente com dizeres e desabafos do outro.
A autoralidade do curta “Dentadura postiรงa” รฉ mais evidenciada na temรกtica da mรบsica do que propriamente na construรงรฃo do filme, de Daniel Madรฃo e Thiago Lopes. Narrativa sobre amigos, sonhadores, brigando por espaรงo para sua arte, em meio ร censura dos tempos de ditadura. Retrato do que muitos mรบsicos passam, tambรฉm, atualmente com a produรงรฃo musical, cultural e a indรบstria que rodeia esse panorama no Brasil.
A filmagem รฉ de cรขmera na mรฃo, assumindo a truculรชncia e o desfoque como recurso estรฉtico, em alguns momentos os prรณprios personagens se filmam simulando uma imagem analรณgica em quadro 4:3. Os diรกlogos entre os personagens, pouco silenciosos, รฉ a levada da histรณria, embora seja dito que “esse negรณcio de nรฃo dizer nada tenha um porquรช”. O nome do curta, que levou trรชs anos para ser feito, รฉ uma brincadeira entre as sonoridades das palavras “ditadura” e “dentadura” e faz parte do prรณprio texto do roteiro.
Crรญticas e mais crรญticas
Curtas com temas polรญticos como centro da obra criaram um conceito para a mostra regional desta quarta, “Agnus Dei” foi o terceiro filme, capaz de estremecer nรฃo somente o personagem real – Frei Tito de Alencar Lima – interpretado por Gustavo Burla, assim como quem o assistiu. ร discurso que ferve na diretora Tรกscia Souza, que, junto a Josรฉ Eduardo Brum, lanรงa um curta inspirado livremente no depoimento do Frei sobre as torturas do perรญodo da ditadura militar.
A produรงรฃo do grupo Hupokhondrรญa evidencia a caracterรญstica teatral deste curta, um monรณlogo sofrido, em que a atuaรงรฃo de Burla, somada ao texto, รฉ o todo. Transaรงรตes lentas das cรขmeras sรณ ressaltam angรบstia e dor. Enquanto fala sobre como esperava sua morte – chegando quase a implorรก-la por nรฃo suportar os ferimentos -, a impressรฃo que se tem รฉ que o personagem narra sua prรณpria histรณria, como Jesus contando uma passagem, ao fim, simbolicamente, se enforca (ou รฉ enforcado) com a mesma corda em que amarra sua batina.
Uma questรฃo que amarra as sessรตes regionais รฉ a noรงรฃo de colaborativismo das produรงรตes cinematogrรกficas, embora a participaรงรฃo esteja bastante rica, alguns nomes aparecem em mais de um filme. Outra questรฃo sรฃo os profissionais multifacetados, capazes de desempenhar funรงรตes complementares do audiovisual. “Arco de balรตes”, por exemplo, รฉ dirigido por Burla, ator de “Agnus Dei”. Dessa vez, Josรฉ Eduardo Brum sai do papel de direรงรฃo e assume o roteiro e a produรงรฃo executiva. O roteiro รฉ uma adaptaรงรฃo de um de seus contos, em que tudo comeรงa com um pedido de divรณrcio no dia da preparaรงรฃo da festa de aniversรกrio do filho, Bruno.
Os balรตes amarelos, vermelhos e pretos, que formam o arco da festa, seguram toda a tensรฃo daquelas cenas. Enquanto ele pede o divรณrcio desabotoando o colarinho e soltando a gravata, aliviado, ela aperta a boca de uma das bolas de soprar, segurando tudo dentro de si. A primeira letra da plaquinha “Feliz Aniversรกrio” estรก caรญda, sรณ sobrou um aniversรกrio sem sentido embalando uma famรญlia falsa, marcada por machismo, submissรฃo e mentiras. O curta รฉ claramente uma crรญtica ร famรญlia tradicional, escancarando verdades comuns em histรณrias que nos cercam. A virada do roteiro รฉ exatamente quando ele assume que estรก a traindo com um homem.
Histรณria documentada
Outra caracterรญstica das produรงรตes da mostra foi a presenรงa de documentรกrios, o segundo da sessรฃo foi uma homenagem ao รบltimo cinema de rua de Juiz de Fora, que se encerrou neste ano. Os diretores do “Majestoso Cine-Palace”, Cibele Sales e Victor Sobral, recolheram longas falas de frequentadores do espaรงo, alรฉm de terem mesclado com algumas poucas imagens de arquivo prรณximas de quando houve a inauguraรงรฃo, mostrando exatamente a diferenรงa de hรกbito e indumentรกria que se usava no cinema. O filme comeรงa com a fala de uma das entrevistadas perguntando-se retoricamente: “Jรก pensou se eu tivesse nascido antes dos irmรฃos Lumiรจre?”.
O Primeiro Plano รฉ o lugar de experimentar no cinema, buscando a prรณpria autoralidade. Eduardo Malvacini, diretor e roteirista do curta-ficรงรฃo “A parada do fim do mundo”, teve a ideia de filmar um curta como se fosse um trecho de um filme maior, um recorte avulso de uma histรณria que jรก envolvia dois personagens, anteriormente ร quela cena.
Foi feito como um exercรญcio, filmado utilizando apenas um plano, sendo que as opรงรตes de imagem, envolvendo tambรฉm cenรกrio e figurino, saรญram um pouco dos filmes do diretor russo Andrei Tarkovski. Aquele รฉ um espaรงo ruidoso, escuro, “como se uma das pessoas tivesse feito um ponto de parada nas estradas que ainda existem no fim do mundo”, explicou o diretor.
Ao final da mostra, “รris da Candinha” รฉ um doc produzido por um protagonista do prรณprio bairro Santa Cรขndida, com histรณrias reveladas atravรฉs de um projeto da Escola Municipal de Santa Cรขndida, uma grande conquista para o bairro que fica na zona leste da cidade. Adenilde Petrina, com sua forรงa e palavras de motivaรงรฃo para que a cultura da comunidade seja mantida, รฉ uma das entrevistadas, que conta sobre o papel das mulheres para a construรงรฃo do bairro. Foram elas que correram atrรกs de รกgua, escola e demais infraestruturas bรกsicas sociais. A histรณria do hip-hop como resistรชncia e prenรบncio de todo o movimento que existe hoje pelos quatro cantos da cidade รฉ, tambรฉm, um dos pontos ressaltados no filme. Outro personagem, morador antigo, faz uma analogia do Santa Cรขndida com o Mangueira, no Rio de Janeiro. No perรญodo pรณs aboliรงรฃo, os negros nรฃo podiam morar nas รกreas centrais e comeรงaram a ocupar essas รกreas, por isso sรฃo bairros situados em morros, explica.