Edimilson de Almeida Pereira tem 40 anos de poemas reunidos em ‘Poesia & Agora’
Edição com 28 volumes do poeta propõe novas leituras e inclui obras antes esgotadas no mercado brasileiro

Edimilson de Almeida Pereira lançou, em 1985, o seu primeiro livro de poemas, chamado “Dormundo”. Desde então, escreveu na voz poética de um imigrante, de um trabalhador rural, como sujeito feminino e como ser não humanizado, de um menino que olha para um senhor e de um senhor que olha para um menino; incorporou sua pesquisa como antropólogo ao trabalho poético e buscou palavras para além do português para expandir essa interseção de vozes que o atravessam; abordou, sobretudo, as grandes contradições humanas por meio de um sujeito que se vê em todas as coisas e de todas as coisas possíveis de se ver em um sujeito. Trabalha uma voz coletivizada, que muitas vezes se subdivide, e que está em diálogo em toda a obra. É essa diversidade de perspectivas que aparece em “Poesia & Agora”, reunião em dois volumes de 28 livros de poemas do autor ao longo de 40 anos de carreira literária. A edição da Mazza Edições propõe novas leituras em relação à obra do poeta, um dos mais premiados da poesia brasileira, e inclui obras antes esgotadas no mercado nacional ou escritas em língua espanhola.

O primeiro poema de “Dormundo” é “Teatro existencial”: “A terrina de esmalte/ largou no mundo. /O dissoluto ser amplia-se. /Lá na terra contam coisas/ sem importância, isso contam./ Como se trem, sais de fruta/ não estragassem”, começa. A indagação filosófica existencial que o poeta lança, nesse momento, perdura em toda a sua obra, ao mesmo tempo que se contrapõe a outras propostas de obras que vêm logo em seguida, como é o caso do “Livro de falas” (1987). Ao revisitar sua obra, nessa edição, ele também percebeu as mudanças pelas quais passou. “O eu da juventude não é o eu da maturidade, embora ambos conservem alguns aspectos que são centrais da experiência humana. Paradoxalmente, me reconheço nesses aspectos, ao mesmo tempo em que eles não respondem a todas as expectativas que tenho em relação ao meu estar-no-mundo”, pensa.
Para ele, a reunião de poemas não é um acerto de contas com o tempo, mas insere essa obra na história de maneira dinâmica — até porque nem a obra está terminada e nem as tensões da história foram resolvidas. Os dois processos, da obra e da história, estão em curso, como o “agora” no título sugere. “A experiência com a poesia é a mais radical em termos de compreensão do mundo, à medida em que a poesia menos explica o mundo e mais interroga sobre os acontecimentos que nos rodeiam. Como interrogação, esse conjunto de obras não perdeu a atualidade, porque faz perguntas sobre questões fundamentais, tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista existencial”, reflete. Sob muitos aspectos, o mundo em que Edimilson começou a escrever, nos anos 80, não está distante de 2025.
Naquela época, em Juiz de Fora, o autor se lembra da sensação de crise e do ambiente repressivo que, guardadas as devidas proporções, se parece com o momento atual. Mas ao mesmo tempo também percebe que a luta por autonomia, a projeção de utopias e a ação de forças contraditórias o influenciaram de maneira direta. “Isso nos obrigava a pensar para além de nós mesmos, individualmente, mas no outro, com os outros, junto com os outros. Acho que fui incorporando essa ideia de que o fazer poético é uma interseção de vozes, e eu sou uma das vozes entre tantas outras; uma das, não a voz determinante”, conta ele, que também percebe que a edição da própria obra surgiu ainda naquele momento como uma característica forte. Essa invenção de um sujeito poético múltiplo veio para tentar entender o redor, que continua provocando perguntas. “A sociedade humana é contraditória e marcada por desigualdades, assimetrias e violências. A poesia insiste nas perguntas sobre esses fatos que não mudam. Ao mesmo tempo, é um profundo mergulho sobre as questões existenciais de cada sujeito, como o tempo e como ele nos devora”, diz.
A permanência do poema
Para Edimilson, o conjunto de sua obra, hoje, é também o retrato de um tempo. “Boa parte da minha escrita tenta ser um diálogo com várias vozes, do passado e do presente, e as vozes que falam nos textos são, na verdade, o choque dessas grandes diferenças que nos fazem humanos. É uma poesia de muitas arestas e muitas perguntas, de pouca explicação fácil para a nossa existência”, afirma. Por isso, quando reviu a própria obra para essa reunião, a sensação foi de uma espécie de decepção, de ver as violências que abordava se repetindo e permanecendo não só na poesia, mas também no mundo. “Temos sido capazes de construir relações sociais muito complexas e de interpretar nossos sentimentos de maneira muito profunda, mas paralelamente há uma parte nossa, como espécie, que corrói tudo isso. Temos destruído o ambiente em que vivemos, os seres viventes e não viventes que nos acompanham, a nós mesmos de maneira racional e intencional.”
Rever o tempo na poesia fez com que ele também pudesse refletir sobre a permanência do poema: para ele, os textos não precisam ter data de validade. À medida em que são escritos e tocam o cerne de determinadas questões, vão sendo permanentemente atualizados e podem tocar o leitor de qualquer época. Também por isso escolhe investir nas personas, mesmo quando a tendência da literatura contemporânea parece ser de uma literatura mais autobiográfica. “Na medida em que nos percebemos como vários ‘eus’ ou várias identidades, podemos ficcionalizar outras experiências para além das nossas individualizadas. Às vezes, essa ficcionalização pode até coincidir com a vida real, mas não necessariamente”, explica.
E agora?
Ao longo da obra de Edimilson, as memórias afrodiaspóricas e de comunidades tradicionais são convocadas, mas não como arquivo, nostalgia ou mesmo como memórias encerradas. Para ele, essa ideia pressupõe que essas memórias estariam congeladas no tempo. “Mesmo sob condições de repressão, muitas experiências e memórias de grupos oprimidos se mantiveram vivas, dialogando e contestando as forças de opressão. Seu dinamismo intrínseco se manteve graças a atores sociais críticos e criativos, a exemplo das culturas populares e afrodiaspóricas”, conta. É o que também trouxe para os poemas, em livros como “Árvore dos Arturos” e “O homem da orelha furada”, que trabalham principalmente a palavra ritualizada. Para ele, essa percepção revela que a memória funciona como um “elástico”, que se estica de maneira tensionada do passado até o presente.
Parece ser também o que o título da reunião de poemas sugere. “Poesia & agora” pode ser lido como questionamento — o que vem depois de tantos livros, uma carreira bem-sucedida na literatura brasileira e a aposentadoria como professor da UFJF? Para ele, certamente não é a finalização do trabalho. “Há livros na coletânea que estavam esgotados e que retornaram para serem lidos e interpretados como se fossem inéditos. Ao mesmo tempo, à medida que os livros estão sendo colocados em linearidade, vão criar novos problemas, porque há livros que são muito diferentes que foram escritos ao mesmo tempo, que mostram dois poetas diferentes escrevendo”, reflete. E os planos se estendem: desde novos volumes de prosa até a continuação da série “O que danças”. No último poema do segundo volume desta publicação, “Resíduo”, parte do livro “Qvasi”, é possível ver um paralelo com o primeiro poema, que dá sentido a essa poesia toda: “Que mudam as tarefas/ da língua,/ não há dúvida./ A dúvida é se o rastro/ do que ela/ afirma/ não é outra língua,/ uma/ tirana da outra./ Se for dessa monta,/ o que somos/ na língua/ é um teatro/ de sombras.”








